Trabalho há dezoito anos nessa profissão, nesse mesmo endereço no centro da cidade. Fiz do meu ouvido um instrumento de trabalho e passo as horas ouvindo histórias. Dezenas de pessoas, milhares de histórias. Sentadas ou deitadas ali no divã ou mesmo perambulando na sala em busca de um fio que as possa conduzir para fora da narrativa de suas vidas. Contam, narram, relatam. Aqui me disponho a contar uma delas. Não, não estou cometendo nenhum crime contra a ética, ao contrário, faço um favor. É que não posso deixar de contribuir dividindo o que aprendi com Maria e Thomaz. Realizo o pedido feito: “O senhor grava e depois escreve e todo mundo vai saber que eu amo meu irmão”. Apenas transcrevo o que foi contado por ela nesse consultório, foram três sessões e o escrito que agora você lê revela a menina de São Joaquim da Barra que trabalha na lavoura de cana desde os nove anos, que frequentou a escola o suficiente para aprender a escrever seu nome, e que veio a saber do amor pelas mãos do ódio e do desprezo.
1ª Sessão
Olha doutor, só tô aqui por causa da assistente social, que teve lá no abrigo e ajudo a gente, eu nem tinha o de come pra sair procurando o que faze da vida, que se não fosse mode trabalha eu nem saia daquele lugar. Não, lá só tem gente boa, que estudou, que antes de conversar escreve uma ficha, e botaram lá que a menina vai pro Rio de Janeiro, é, nasceu doente mas vai ter vida de rico, vai até na praia de biquíni vai vendo, deve que lá tem muita escola né doutor, do jeito que no Rio de Janeiro tem bala perdida ela ainda passa na televisão desviando de bandido, Deus há de dar pr'ela muita história divertida, que eu não tive viu doutor, não, na cana só foice pra lá e prá cá, e em casa cana também só que no copo, minha mãe bebe desde que nasceu eu acho, nunca me bateu não, mas também nunca tirou a mão do meu pai de cima de mim, ela via, sempre viu, era ele que me tirava da cama pra ir pra roça, eu acordava com a mão dele debaixo da coberta, ressecada a mão dele, parecia pano de estopa velha que esfregava minha perna como se fosse chão de cozinha, desde os nove, nunca, nunca falei alto demais, mas falava, pai, ó pai, pára! Mas os olho dele... Tinha medo de falar pra ela porque pensava que ela é que tinha mandado meu pai fazer aquilo, minha mãe sabia e no olho dela, quando ela desviava a cabeça, eu via que ela sabia, tinha mais raiva ainda por isso e ficava calada, só na roça ela ralhava, Ô Tião, deixa a menina trabalha em paz, muitas vezes ele chegava perto de mim e queria roçar as pernas nas minhas ali, no meio daquele nada. Quando minha barriga começou a crescer minha mãe parou de trabalha e só bebia, ninguém mais do povo da roça viu a cara dela, e depois que a assistente social chegou lá em casa ele desapareceu, o sem vergonha fugiu por que o povo fala, né doutor, foi o povo que falou pra assistente social que eu tava de barriga e que devia ser do Seu Tião, o povo sabia do que minha mãe fugia pra dentro da cachaça, sumiu pras banda de Pedregulho, que ele é de lá, levou aquelas mão-suja pra lavar nas pedras do rio que sabão é pouco. Minha mãe bebe por que não é de ação, nunca foi e tem coração ruim, de certo que a cachaça é mais homem pra ela que meu pai, sujo ele sempre foi, só nela ele batia com meu irmão é outra conversa, com o Thomaz ele fala de cabeça baixa e fala pouco, parece que tem vergonha de não ter outra mulher pra bulinar, o Thomaz é homem, trabalha e cuida da vida dele. Daí que assistente social, a primeira, mandou eu pro abrigo e foi lá que a menina nasceu, e foi lá que me levaram ela pro Rio de Janeiro pra viver vida de cidade grande e arrumar a boca que nasceu doente, a infeliz nasceu com uma marca na cara, os lábios divididos, parecia uma lebre do mato fugindo do fogo na cana. Ouvi dizerem que nasce doente filho de sangue igual, ouvi também que Deus vai levar ela cedo porque é do meu pai... Vai não, viu doutor, que aquela ali vai ser dura na queda, sei disso por causa que vi no olho dela, ela tem os olhos do pai dela... Nasceu de sangue igual sim, mas igual porque a menina é do Thomaz. Meu irmão é homem de verdade.
2ª Sessão
Eu sei, doutor que meu caso não é de perda, tô cansada de perder. Minha mãe não faz falta porque faltou esse tempo todo, teve coragem de meter fogo na casa que era a única coisa certa. Ela devia era de ter queimado junto. Não, é só da boca pra fora, sei que ela tem lá a dor dela. Mas agora a gente não tem endereço, é alpendre, sacada de loja, na praça a gente dorme só dia de semana e de vez em quando na guarnição da rodoviária. Meu irmão sabe fazer uma casa com as mãos e vai por de pé um lugar decente pra criar esse daqui, que esse vem no mundo pra ser meu, ninguém vai botar a mão, nem gente da mais alta. Sonho toda noite com a menina que foi embora pro Rio de Janeiro, eu chamo ela de Conquista porque é pensando em vitória que eu deixo de tremer de medo. Ela vai crescer e um dia vem me dar um abraço, não vem doutor? Ela não está morta, preciso lutar por ela! E aí nós já vai ter casa e salário, que eu não gosto de viver de esmola, quem dá faz isso pra não ter de rezar.
3ª Sessão
Bom dia doutor, vim só despedir. Não, vou ficar por aqui mesmo. O Thomaz é que vai pra Rio Preto, ele conseguiu uma vaga na casa de recuperação de lá, tem muito drogado nessa vida mas ele não mexe com isso não. Vai fazer curso de pedreiro pra arrumar serviço aqui, depois que ele voltar a gente vai alugar um cômodo com banheiro e criar nossa filha que tá forte e não tem sangue ruim, Deus mandou ela pra fazer o alicerce da nossa casa e um dia, sabe doutor, até o senhor vai poder tomar um cafezinho lá. Então eu já vou porque não quero chorar, vai que o senhor pensa que não sou agradecida. Eu queria era mesmo poder pegar na sua mão e dizer que ter me ouvido fez foi dar mais força pra minha coragem. Fica com Deus o senhor também.
Baltazar Gonçalves é formado em história; professor, fotógrafo e escritor membro da Academia Francana de Letras
Fale com o GCN/Sampi!
Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.