“Ai, palavras, ai, palavras, /que estranha potência, a vossa! /ai, palavras, ai, palavras, /sois de vento, ides no vento, /no vento que não retorna, /e, em tão rápida existência, /tudo se forma e transforma! /Sois de vento, ides no vento, /e quedais, com sorte nova!”
Andei pensando em Cecília Meirelles nos últimos dias; especialmente no seu “Romance das palavras aéreas”, parte do Romanceiro da Inconfidência. Isso se deu por conta de dois verbetes que nos últimos tempos ganharam novas acepções além das literárias, onde permaneceram por longo tempo. Refiro-me à “narrativa” e “resenha”.
“Resenha” sempre esteve muito presente no léxico de leitores e comentaristas de livros e filmes. De minha parte, desde os tempos universitários usei-a, como outras e outros, como gênero textual que registra impressões sobre uma obra. No curso de Letras aprendemos, com professores de formação estruturalista, a deslindar o enredo da narração, o discurso da narrativa.
“Narrativa” também fez e continua fazendo parte do repertório de quem gosta de escrever ou falar sobre ficção. Sequência de fatos interligados que ocorrem ao longo de certo tempo, cronológico ou psicológico, toda narrativa possui elementos básicos relatados por alguém. Entender as duas linhas, o enunciado e a enunciação, seus afastamentos e aproximações, é fundamental para qualificar uma obra literária. Todo resenhista sabe disso.
Mas o mundo gira e a Lusitana roda. Depois de séculos em que “resenha” e “narrativa” permaneceram pétreas no campo das artes, estou ouvindo-as e lendo-as em sentido diverso. Registro e explico.
Foi durante as últimas eleições presidenciais no Brasil que apareceu um emprego novo para “narrativa”, desvinculado das letras. Nas primeiras vezes escutei o vocábulo da boca do bom comentarista de política Nilson Camarotti, um expert também em literatura brasileira. Estávamos então, enquanto leitores e espectadores de boa-fé, sujeitos a uma enxurrada de registros adulterados nas redes sociais. Eram as fake news. Camarotti começou a descrever o fenômeno no programa “Globo News em Pauta” como “narrativas”. Naquele momento, tropecei no entendimento do que estava querendo dizer o repórter. Mas o termo se alastrou tão rapidamente que ficou patente que o sinônimo passava a ser a notícia sem base na realidade, inventada por candidatos e assessores para ludibriar eleitores. O substantivo se ampliava e alçava voo para mais uma sinonímia. De lá para cá, tornou-se usual o novo sentido.
Matutava sobre essa característica das palavras, que também é a das pessoas, de irem mudando não só na forma como também no fundo, quando tive minha atenção despertada para recente peça publicitária na televisão que indagava ao telespectador o que ele gostaria de fazer no fim de semana: “Esportes? Cinema? Passeio com a família? Restaurantes? Resenha com os amigos?” Epa! O que seria isso exatamente? Pelo contexto eu imaginava um lazer, mas de que tipo? Seria a reunião de leitores para falar de livros? Muito bom para ser verdade no Brasil que ainda lê tão pouco.
Dias depois, respondendo à minha curiosidade, um jovem me explicou que fazer resenha com os amigos é forma de se reunir para conversar, rir, contar histórias, falar de esportes e de tudo-quanto-há, aproveitar a companhia uns dos outros. Ou seja, compartilhar momentos agradáveis e descontraídos. Tão rapidamente quanto narrativa, resenha já estava fazendo parte do vocabulário cotidiano depois de permanecer presa ao linguajar das artes por um tempo incalculável.
Estranhei ambos os casos, mas depois, pensando melhor, acho que faz sentido chamar de narrativa algo que não tem sustentação na realidade, pois que é a ficção senão uma mentira bem contada por um escritor criativo? E nominar resenha a um encontro onde os participantes trocam opiniões sobre assuntos diversos não é uma forma de avaliar fatos da realidade?
Caberá à semântica, ramo da linguística que estuda o significado das palavras, considerar esses e tantos outros casos recentes de polissemia e seu surgimento entre os falantes do português. Deve ser interessante descobrir como tal aconteceu, por que vias um novo sentido foi atrelado ao antigo.
Enfim, as palavras sofrem o efeito das mudanças, como tudo o que existe sobre a face da Terra. Essa questão de base para o entendimento dos seres, das coisas, da natureza e das palavras chamou a atenção do grande Camões. Foi inspirado em Heráclito que ele escreveu o soneto “Mudam-se os tempos”, que nos fala da impermanência de tudo. Diz o vate no primeiro quarteto: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, /muda-se o ser, muda-se a confiança; /todo o Mundo é composto de mudanças, /tomando sempre novas qualidades.”
Novas qualidades tomaram as palavras “narrativa” e “resenha”. No momento estão quedadas, “com sorte nova”. Não se fossilizaram, como pode acontecer com o que ou com quem não se movimenta.
Viva Clarice, Camões e Heráclito com suas verdades. Elas sim, permanecem.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras
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