NOSSAS LETRAS

Dona Eulália

Esse estabelecimento é mais frequentado no período de volta às aulas quando as prateleiras estão abarrotadas de papelaria. Leia a crônica de Baltazar Gonçalves.

Por Baltazar Gonçalves | 23/03/2024 | Tempo de leitura: 6 min
Especial para o GCN/Sampi Franca

Esse estabelecimento é mais frequentado no período de volta às aulas quando as prateleiras estão abarrotadas de papelaria. Mas temos livros para escambo, são livros lidos que barganho por livros lidos. Alguns títulos têm valor inestimável, Ulisses é um deles porque ganhei a obra monumental de Helena Souza. Até Dona Eulália aparecer ninguém tinha se interessado por Joyce. Dona Eulália não é pobre, também não é rica, vive da gorda pensão que o falecido lhe deixou. Aos setenta anos inabaláveis, gasta mais com livros do que com a saúde e prefere ficar longe das desavenças corriqueiras da vida. Dona Eulália não se apega a quase nada. Na primeira conversa que tivemos descobri que ela mora bem perto da papelaria, a parede do seu quarto gemina no muro do pomar ali nos fundos. Somos vizinhos.

Dona Eulália parece estrábica, mas é puro charme os olhinhos miúdos. Outro dia essa senhora discreta postou no Facebook uma selfie, era apenas sua sombra delgada e aristocrática tão bela quanto pode uma gazela. Foi quando tive oportunidade de me conectar estendendo o interesse dela para o pequeno acervo da loja.

Ela perguntou o que eu fazia quando não tinha clientes na papelaria e riu quando respondi que passo muitas horas escrevendo poesia e me perguntando quem de fato é ela. Sobre a foto, com um gesto despretensioso arrumou o cabelo e respondeu sorrindo que finalmente tornara-se uma sombra. Puxando mais o fio da conversa, Dona Eulália me contou que outro dia usou sem prestar atenção um creme antissinais que estava velho, era um resto no fundo do pote. Disse que foi às redes sociais, foi a primeira vez na vida que reclamou. Não coube processo, o fabricante suíço advertia na bula que o creme contra os sinais de expressão tinha que ser aplicado no tempo certo.

– O tempo certo, o que significa? Esse realismo tem furos. O caso repercutiu na imprensa, minha cara no jornal de domingo parecia duas bandas de maracujá enferrujadas. Dona Eulália não se sentira exposta, pelo contrário, ela gostou da discreta legenda da foto que dizia EULÁLIA LÊ MUITO. E é verdade, lê muito. A prova que tenho disso é que Dona Eulália leu o meu Ulisses de Joyce ganhado de Helena. Quando voltou à loja perguntei sobre sua leitura de Ulisses.

– No romance do irlandês tem de tudo, inclusive poesia.

E como se desviasse do assunto, ela me contou que foi ao oculista. Dona Eulália nunca usou óculos. Seu oftalmologista é renomado, diagnosticou tártaro nos cílios e indicou que ela lesse menos. Semanas depois, de volta à papelaria, um pouco triste e com os olhinhos miúdos ainda mais fechados, perguntei sobre o tártaro nos cílios.

– Nem sinal!
– A senhora seguiu à risca o conselho do especialista e diminuiu suas leituras?
– Não. Passei a ler em voz alta. O caso é que agora preciso de encaminhamento para um bom dentista.
– Dentista?
– Suspeito ter cáries nas cordas vogais.

Dona Eulália foi encaminhada ao dentista, eis seu relato:
– Que história é essa de cárie nas cordas vogais? O especialista estava espantado.
– Estou varrendo Ulisses em voz alta, suspeito ser efeito colateral.
– Vamos ver de perto, abra a boca e diga A.
– AAAA C AAAA
– É o que pensei. O dentista retira a lupa.
– É grave?
– Nunca vi nada igual. Tem uma intertextualidade ali, é caso de canal.

Nesse estado de espírito, à beira da epifania, entristecida, mas não abatida, Dona Eulália saiu do consultório com uma receita na mão decidida a passar na floricultura. Com Dublin dentro da bolsa, fui comprar cores porque precisava florescer. Andou entre dálias desviando-se das samambaias de metro.

_Tudo ordinário.
– O que a senhora disse?
– Nada. Pensei em voz alta. Que planta é essa?
– Rosa do deserto. Disse o atendente estranhando a altivez da gazela.
– Vou levar. Preciso humanizar a terra antes de transplantar?
– Sim, temos húmus. A senhora quer levar?
– Não preciso. Em casa esquartejo Ulisses e adubo a terra. Dá e sobra.

O florista colocou a rosa na caixa. Dona Eulália percebeu que as pontas do deserto ficaram de fora.
– Melhor assim.
– O que disse?
– Tudo. Mas é só passamento.

Concluo que minhas conversas com Dona Eulália não têm preço. Concordamos que a Literatura é o coração das ciências e a poesia a alma da Literatura. Outro dia ela me surpreendeu com o motim das letras e me contou.
– Como posso ter mergulhado para cima tão fundo no Genesis que a Terra ficasse pequena e vermelha?
– Como foi isso? Perguntei suspeitando delícias.
– No silêncio seminal da madrugada eu admirava o motim das letras. Estava escrito que o levante se deu no oitavo dia quando toda coisa criada descansava sem movimento. O breu eterno das engrenagens, agonizando em erupção, deu início ao motim das letras quebrando o silêncio. Foi quando a manufatura se quebrou cuspiu hidrogênio que os sons fundiram as palavras.
– Esse foi o motim das letras? Perguntei.
– Exatamente. O sem nexo ganhou phormha khores louxes reflexsonz brilhions.
– Que maravilha! A essa altura o Criador deve ter se retirado à procura de pontuação, contemplei rindo com ela.

Agora Dona Eulália está famosa, faz sucesso no twitter, temo que desapareça da papelaria. Na web ela cola frases de autores famosos entre trechos das bulas de seus remédios e todos dizem que é tão moderno quanto Ulisses. O mais divertido são os comentários dos seus seguidores, ela tem muitos seguidores. Há quem confunda seu oftalmol com seu dentista e os dois com Nelson Rodrigues e Lorca.

– A unanimidade é burra, quem pesa o tempo não pensa bem os sinais.

Dona Eulália me disse que vai fazer uma viagem longa, que vai sumir por uns tempos. Como alguém que se deixa prolongar, deu-me um poema seu intitulado COLORICO.

“Esse poema é destinado ao tratamento 
de inúmeras irritações nos olhos causadas 
por verbos sem direção, poeira estéril, calor, 
fumaça, falta de luz crônica e corpos mutilados 
sem esperança soltos no vento.
Como todo medicamento, esse poema 
deve ser mantido longe do alcance de crianças 
e usado com fé. É medicamento que se destina 
a quem sofre do medo de perder
a estátua e aquele acento que de noite imprime em
plena face de teu alento a solitária rosa.
Leia sem moderação, o contrário pode causar graves
crises de hipertensão e a sensação de proezia 
na glândula tireoide devido ao forte componente sinestésico 
somado à nafazolina presente nos componentes 
de inúmeros versos. POEMA DE EULÁLIALORCA”

Quando sinto falta de Dona Eulália, atravesso a papelaria pelos fundos e sigo até o pomar onde a sombra da pitangueira estampada no muro é tão esguia como pode uma gazela aristocrática. Parece que ouço a ironia dela na despedida dizendo que na terra prometida o nada em excesso saúda o sucesso. Então, como se eu também sentisse falhar as cordas vogais cariadas ou pesasse tártaro nos meus cílios, retorno para o interior do interior da papelaria morto de saudade.__

Este conto está publicado no livro Tecido na Papelaria pela editora Penalux.
Baltazar Gonçalves é formado em História pela Unesp e escritor membro da Academia Francana de Letras

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