Minha irmã e eu, mais todos os amigos de infância, sofremos com um vírus que nos deixava amuados por uns dias, olhos ardendo, coriza, garganta irritada e tosse. Por certo seria gripe, diziam os adultos observando tais sinais. E gripe se curava então com limonada durante o dia e leite com açúcar queimado com rama de canela antes de dormir. Mas quando, dois ou três dias depois, nossa pele se pintava com manchinhas vermelhas, tornando rostos, braços, colo, pescoço e barriga parecidos a telas pontilhistas, o diagnóstico mudava. Era sarampo.
Os termômetros subiam rápido e batiam nos 40 graus, um pavor para as mães de toda a rua. Altamente contagioso, o vírus pulava de um para outro com a maior facilidade. Doença grave, chegava a matar milhares de crianças durante as epidemias. E deixava sequelas nos sobreviventes. Muitos ficaram surdos ou tiveram audição prejudicada por conta da otite aguda que era uma das consequências. Outros morreram vítimas de pneumonia ou encefalite, duas complicações bem comuns. Por isso, sarampo era motivo de preocupação e ansiedade.
Para alívio geral, essas deixaram de existir quando um cientista, Maurice Hillerman, chegou ao fim de longo trabalho e publicou em 1969 pesquisa pioneira numa renomada revista científica: havia conseguido produzir uma vacina com vírus vivos “enfraquecidos” de sarampo. Em 1971 ela estava disponível no mercado; em nosso país, os governos investiram a partir de então na compra de milhões de doses e em publicidade vasta para mostrar aos brasileiros a necessidade de aderir à vacinação.
A resposta foi muito boa: 45 anos depois, em 2016, recebíamos o certificado de eliminação do sarampo, concedido pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Por três anos nos mantivemos nessa posição de nação que tinha erradicado a doença. Mas em 2019 perdemos o status, tendo o vírus se reintroduzido entre a população. Novos casos apareciam e no final daquele ano tínhamos tido 10.429 confirmações em todo o país. No ano seguinte, dois óbitos foram registrados. Desde então o Ministério da Saúde redobrou suas revisões periódicas a fim de identificar rapidamente qualquer ocorrência de surto, já que ainda temos pais e mães contrários a vacinas, por conta de pressupostos equivocados que se tornaram perniciosos. Talvez pertençam a uma geração que não viu o sofrimento de crianças e os riscos que correram.
A essa altura, a leitora, o leitor podem estar se perguntando o que tem a ver toda essa defesa da vacinação com o título da crônica. Que vínculo une afinal o sarampo e as flores do sabugueiro? Explico, num retrospecto que pode parecer individualista a alguns; mas, como já escrevi dias desses, quem me rege enquanto escrevo são o desejo sempre, e a memória muitas vezes.
Então, a história que quero contar continua com nossa mãe assustada nos pedindo cuidado, pois havia dois vizinhos infectados. Mal sabia ela que muitos outros, mais minha irmã e eu, já estávamos contaminados, os bichos viajantes em gotículas dos espirros infantis alojados em nossos corpos. Transcorridos dois dias do alerta, o primeiro sinal vermelho apareceu nas nossas orelhas e rapidamente se espalhou. Para completar a ruindade, a febre apareceu, nos deixando em estado de torpor. A mãe fazia poções de gosto horrível, que recusávamos ou de cuja xícara bebíamos só um pouco, para desabar logo a cabeça no travesseiro. Colocava compressas de água fria na testa, no afã de fazer a temperatura baixar. Envolvia a única lâmpada do quarto, pendurada em longo fio desde o teto, num pedaço de papel-de-seda vermelho. Com a convicção de conhecimentos herdados, afirmava que aquela luz vermelha iria “fazer a doença vir toda para fora, não ficar incubada”.
Nada dando certo, corria atrás de flores de sabugueiro, que eram o melhor remédio que se costumava ter para essas situações. Havia sempre alguém prevenido que as tinha colhido na primavera anterior e guardado numa gaveta ou caixa de madeira para secarem. O sabugueiro, arbusto lindo, florescia em geral no final do ano, tinha um cheiro bom, seus buquês exibiam um tom que hoje chamaríamos de off-white. Para uma mão cheia de florzinhas secas, um litro de água. Aquilo fervia uns minutos, era coado e nos dado a beber. Se havia mel e limão, eles entravam na infusão que ingeríamos sem muitas delongas.
Era tiro-e-queda, dizia-se. Não sei se em razão dos reconhecidos efeitos antipirético e anti-inflamatório das flores do sabugueiro (mas não das folhas, que são tóxicas), não sei se por conta do restrito tempo de permanência dos bichos dentro da gente, em alguns dias minha irmã e eu estávamos fora da cama. Meio fracas e inapetentes, mas imunizadas e desejosas da vida corriqueira, a que era oferecida às crianças daquela época. O simples brincar na calçada no final do dia, construindo memórias para o futuro.
E não é que, de repente, na semana que se finda, entre presente e passado fez-se em minha memória o link que me levou a escrever essa história? Aconteceu de um amigo, conhecedor do meu gosto pela natureza, ter me enviado pelo whatsapp a imagem sem legenda de um arbusto florido que ele havia descoberto numa incursão ao campo. De cara lhe perguntei: “-É sabugueiro?” Ele fez suas consultas e depois de dois minutos respondeu: “É. Sabugueiro! E eu nem sabia!”
Obrigada, @Baltazar Gonçalves, poeta potente, coração de estudante, alma gentil. Certas experiências tornam-se ainda mais ricas quando compartilhadas. Podem até inspirar uma crônica. Namastê!
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras
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Comentários
1 Comentários
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Juarez 27/01/2024Tomei o chá e minha recomendava para meus sobrinhos. O ruim é ver que a população brasileira foi levada a não se vacinar por um governo maldito.