NOSSAS LETRAS

Os olhos do meu pai

Algumas vezes encontro pessoas que, conversando sobre livros, me dizem: 'minha vida daria um romance'. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 13/01/2024 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN/Sampi Franca

Algumas vezes encontro pessoas que, conversando sobre livros, me dizem: "minha vida daria um romance". Nessas ocasiões costumo acenar com a cabeça, concordando por alto, pois é certo que toda existência tem na sua singularidade a marca que a distingue. Por si só tal característica autorizaria o registro em letra impressa de alegrias e tristezas, encantos e desilusões, comédia e tragédia, ascensão e queda, começo e fim com muita intriga no meio.

Mas a cada afirmação que me faz alguém sobre a possibilidade de ver sua vida levada para um livro, penso em duas coisas. Primeiro, no conceito de romance como forma literária popularizada no ocidente desde o século XIX, apresentando de maneira ficcional a experiência da modernidade. Segundo, que os fatos de uma vida, sejam banais ou esdrúxulos, simples ou bizarros, intensos ou tediosos, podem ser matéria de um romance desde que o escritor (considerado aqui aquele que escreve) seja senhor absoluto no uso das palavras. É especialmente o discurso que vai tornar a saga uma obra de arte ou um folhetim descartável.

Mais ou menos isso nos falou Menalton Braff, em entrevista a Vanessa Maranha, no Instagram, em setembro passado. Como-se-diz pode elevar potencialmente o-que-se-diz. Caminham entrelaçados os fatos e as frases para erguer seres, criar espaços, desvelar sentimentos, estruturar o aqui/agora e ao mesmo tempo encadear com verossimilhança, linearmente ou não, os acontecimentos. O romance cujo título tomei emprestado para este comentário é o trigésimo na carreira do escritor.

Os Olhos do Meu Pai é um relato sobre família proprietária de fazenda centenária tornada símbolo de um sistema arcaico, no qual herdeiro é só o primogênito. Este tem de se equilibrar entre a dura vida no campo, onde precisa se submeter às ordens do pai, e o desejo de ter seu próprio pedaço de terra, sonho de liberdade que nasce e cresce a partir do casamento com a filha de outro fazendeiro, a moça também ligada à terra e de nome emblemático, Esperança. A Esperança, assim mesmo sempre precedido do artigo, como usa o narrador, é catalizadora da trama que evolui devagar, num coro de vozes assim definido por Joaquim Maria Botelho, jornalista, escritor, crítico literário que assina a orelha: “Como numa canção, que começa com um trio de cordas e ao qual vai sendo acrescentado o grito do violino, o langor do violoncelo e o susto do tímpano”.

Bem antes do susto do tímpano, porém, o leitor segue duas histórias paralelas mas ao mesmo tempo interligadas por sutis intersecções. Uma, contada nas epígrafes que introduzem capítulos; outra, relatada em mergulhos e volteios pelo protagonista, num registro de fala da gente interiorana. Usando a técnica da semeadura e colheita para compor a saga rural, o escritor cria um tempo que flui inexoravelmente, orquestrando a tragédia que se funda numa esperança. No Brasil profundo, muitas histórias parecidas existirão. Mas contar uma delas tornando-a pungente como uma ópera, só escritores como Menalton Braff - com seu domínio do idioma, gosto pela oralidade, conhecimento dos movimentos da alma, condição de neutralidade de julgamento diante das ações e comportamentos de seus personagens.

Joaquim Maria Botelho destacou com precisão a sonoridade do texto de Menalton Braff e me fez lembrar o pigarro emblemático do velho fazendeiro, elemento que marca no tempo devido momentos de tensão e funciona como um coágulo que impede a circulação de ideias. Mas há que se  frisar  também as imagens que fixam em nossa memória os olhos redondos e escuros do gambá predador; uma de suas vítimas, a galinha com o pescoço estraçalhado; a coruja encarapitada num moirão, virando a cabeça em cento e oitenta graus; os cachorros com as patas embarradas; o chapéu ríspido; a faixa leitosa, tênue, quase imperceptível no céu; o cotovelo sobre a mesa, a testa apoiada numa das mãos; e mais centenas de flashes descritivos que espocam lembrando um filme, como neste trecho:  “Finalmente depois de todos terçarem olhos comigo, que os encontro em giro que faço ao redor da mesa, vejo meu próprio pai com os olhos encravados em meus lábios”.

Diante dessa massa de palavras que formam frases, se organizam em parágrafos, perfilam personagens, desenham cenários, criam enredo, descrevem sentimentos e envolvem o leitor até à medula, faz-se pertinente uma reflexão sobre certos sistemas de sucessão hereditária; o perigo de alimentar ilusões e expectativas muito altas; o risco de represar sentimentos porque um dia eles podem se tornar torrente avassaladora; a urgência da boa comunicação, plena e verdadeira. E mais: pais precisam preparar os filhos para que estes consigam identificar predadores, tão presentes na vida animal como na humana.

Menalton Braff é gaúcho. Tem 85 anos. Reside há décadas na região de Ribeirão Preto. Conquistou vários prêmios literários, como o Jabuti, e foi finalista da Jornada de Passo Fundo, do Portugal Telecom, do Jabuti (duas vezes) e do Prêmio São Paulo de Literatura, primeira edição. Recebeu Menção Honrosa do Prêmio Casa de Las Américas – La Habana. Tem participado de eventos literários, salões de ideias, feiras do livro e encontros nas redes sociais.

Os Olhos do Meu Pai pode ser adquirido pelo site do autor ao preço de R$ 58.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras

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