NOSSAS LETRAS

Traduzir-se: resenha, depoimento e poesia

Um tanto desajustado, escrevi um poema sobre o ano novo. Ficou saudosista e comecei de novo. Leia o artigo de Baltazar Gonçalves.

Por Baltazar Gonçalves | 13/01/2024 | Tempo de leitura: 6 min
Especial para o GCN/Sampi Franca

Um tanto desajustado, escrevi um poema sobre o ano novo. Ficou saudosista e comecei de novo. Retomei a escrita, mas ficou ingênuo futurista inofensivo meio placebo. Talvez eu continue escrevendo em busca do frescor da nova idade, novo tempo, nova era? Quanto tempo se perde em busca de ganhar tempo. O ato de escrever costuma mexer ponteiros dentro, de vez em quando me sinto ajustado. Se a vida é uma viagem breve, o bom é ser passageiro, na janela da existência dizer bom dia, não esquecer das ruas, vigiar e orar sempre e preservar amizades, tudo mais é acrescentado onde houver minutos de sabedoria, viver só por hoje é simples, todo mundo busca e não há quem duvide: só vivemos no agora!

Ano novo vida nova, assim será? Se propagamos nossa vontade anunciando o desejo de renovação, de boca em boca não haverá mais fome? Nos sonhos não haverá mais guerras? Talvez por instantes negamos quaisquer realidades e se fecharmos os olhos para as mazelas do passado num brinde, jurando fazer diferente, obteremos novos resultados, mas projetamos uns nos outros a responsabilidade do sucesso nas empreitadas. Se tudo der certo chegaremos à artifícios de uma virada no roteiro que escrevíamos para nossas vidas no fundo patéticas. Mas a vida não é filme, não existe roteiro a ser filmado. Chegamos até aqui desconstruindo e refazendo nas horas cada minuto, acreditando que os destroços serviriam para refazer os caminhos. Assim é o tempo, senhor absoluto e independente das vontades, não sai do lugar e não leva a lugar nenhum, o novo se mostra quando chega no silêncio de cada revolução íntima, dentro da espera e na agonia de não sabermos guardar o sabor de cada momento.

Ler o livro MANIFESTO ANTIMATERNALISTA de Vera Iaconelli me deu a sensação de estar em casa, ou num ambiente reconhecido de mais luta que conforto, embora acolhido, um estar atento como se ligado de novo ao que realmente importa pensar. Isso muito porque a minha identificação com o tema vem de sempre, sempre questionei o papel social de reprodução das diferenças de classe, cor e gênero, desde o útero das mulheres próximas na família até o meu comportamento de pai cuidador durante a primeira infância de minhas filhas. Troquei fraldas, cantei para dormirem, acompanhei a alfabetização nas reuniões de pais nas escolas da mais velha, levei ao médico, brinquei de boneca e desfile em passarela inventada e brinquei de bola e pega-esconde nas pracinhas dos bairros periféricos em que moramos em Franca. No entanto, assim como mas em proporção obviamente distinta, meu papel desempenhado de pai-cuidador que socialmente é relegado à mulher-mãe, foi cinicamente apagado na mesma chave de interpretação que condena as mulheres que decidem a não ter filhos, ou que se sobrecarregam insanamente com empoderamentos neoliberais no estilo “alguma coisa está errada com você, se medique e seja mais produtiva”, apagamento eu dizia, mesmo relegado ao ridículo do clichê “pai ausente” que dá aos que atuam representando (eu disse atuar e representar) de acordo com as conveniências machistas da nossa sociedade doente. Passei a madrugada na companhia da autora, sua voz ecoando siamesa da minha consciência alargando os sentidos da leitura e me fazendo lembrar porque tenho lido tão pouco: se a leitura não é transformadora, me custa o tempo de fingir que tudo está bem. Ler o MANIFESTO ANTIMATERNALISTA também coloca em perspectiva, não só meu lugar no mundo como pensador do meu tempo, mas também a responsabilidade de continuar dançando e rindo e amando para que meus netos possam emergir sob o peso das ideologias e crenças limitantes e entender que seu avô não se vendeu.

A gente se acostuma com o esforço imenso que faz para parecermos sociáveis, comunicativos e - acima de tudo - entendidos. Quase ninguém ouve de verdade, as conversas parecem o que são: ruídos. Ouvir é habilidade inestimável e difícil, mas quando duas pessoas estão falando quase nunca querem escutar de fato. Tenho pouquíssimos interlocutores que sabem ouvir, aquele tipo de pessoa que nota até o seu silêncio nos gestos porque quer apanhar no momento a sua pessoa por inteiro. Tenho poucos ouvintes, dá pra contar numa das mãos, e são preciosos! às vezes parece que minha existência no trânsito é segura e garantido pela ressonância deles existo. Todo mundo parece surdo querendo ser ouvido. Existe uma pressa. Eu aprendi ouvir para saber quem é surdo. A gente se acostuma a ser superficial, as relações interpessoais ficam no raso quase sempre. Só sinto que comunico o que mais importa para mim quando escrevo, quando estou comigo mesmo e o mundo dentro, quando faço essa limpeza do que é irrisório acumulando. Se eu não precisasse, ia falar como escrevo: ali eu sou.

Depois de citar o poema TRADUZIR-SE de Ferreira Gullar para ilustrar o pensamento que desenvolve no capítulo "psicanálise e corpo erógeno" do seu livro MANIFESTO ANTIMATERNALISTA, Vera Iaconelli faz alusão à poesia como tecido último das representações e nossa busca incessante de compreensão do inominável que permeia nossos horizontes e nos impulsiona. "Se o corpo é um objeto oferecido à percepção humana, só acessível a partir da linguagem, pois ela o nomeia, então a linguagem cria o corpo, sem nunca o alcançar. Como definir, por exemplo, amor, experiencia humana tão básica quanto intangível? Por não termos como abarcar a experiência por meio da linguagem, haverá sempre um resto intraduzível. Não é isso que os poetas não cansam de denunciar? Estamos condenados a tentar dizer o indizível que atravessa nossa existência? A cada vez que a poesia consegue rodear de palavras a matéria bruta da vida, ao ser compartilhada leva outros a se sentirem mais próximos de si mesmos. Por isso Lacan aponta para a poesia como o recurso último de análise. A arte está aí para aludir ao que "não para de não se inscrever" - que ele nomeia Real e que nunca será inteiramente simbolizável, embora insista permanentemente em tentar sê-lo."

Com o atraso de uma Alice que não deseja perseguir o coelho branco, sempre atrasado, pela toca imensurável nos descaminhos do país das maravilhas, desejo que as novas gerações possam ter o benefício dos esforços nos campos hoje floridos, onde girassóis brilham a coragem de sabermos que haverá amanhã porque semeamos.

Baltazar Gonçalves é historiador e membro da Academia Francana de Letras

(abaixo, o poema de Ferreira Gullar)

Traduzir-se
Uma parte de mim é todo mundo;
outra parte é ninguém: fundo sem fundo.

Uma parte de mim é multidão:
outra parte estranheza e solidão.

Uma parte de mim pesa, pondera;
outra parte delira.

Uma parte de mim almoça e janta;
outra parte se espanta.

Uma parte de mim é permanente;
outra parte se sabe de repente.

Uma parte de mim é só vertigem;
outra parte, linguagem.

Traduzir-se uma parte na outra parte
— que é uma questão de vida ou morte —
será arte?

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.