NOSSAS LETRAS

O que é a felicidade?

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 5 min

Nunca se usa tanto o adjetivo “feliz” como na época das festas de fim de ano. Feliz Natal! Feliz Ano Novo! Quantas vezes dizemos, digitamos, escrevemos e lemos nos cartões as duas conhecidas frases que expressam desejo de felicidade para o próximo, a humanidade, o mundo?

Mas se perguntarmos a um grupo de pessoas reunidas aleatoriamente o que é felicidade, as respostas serão diversas porque, num certo sentido, ela é algo individual, intransferível. Em contrapartida existe uma ideia de felicidade que pertence ao senso comum e é compartilhada pela maioria, especialmente em nosso país: “muito dinheiro no bolso/ saúde pra dar e vender”, como na valsa composta por David Nasser e Francisco Alves em 1951. Até hoje é o hino oficial do Réveillon no Brasil.

Felicidade faz parte da história do ser humano. Sendo assim, é possível traçar sua evolução se nos debruçarmos sobre a filosofia, que sempre se dedicou a investigar ideias de modo a defini-las e esclarecê-las. A referência mais antiga encontra-se em fragmento de Tales de Mileto, que viveu na primeira metade do século 6 A.C. Segundo ele, “é feliz quem tem corpo são e forte, boa sorte e alma bem formada”.  Demócrito de Abdera, três séculos depois, excluiu a sorte do conceito e julgou que para alcançar a felicidade o homem deveria deixar de lado as ilusões e os desejos, buscando apenas serenidade. Empatava com o ideal budista.

Cem anos se passaram e chegou Sócrates, conferindo novo rumo à compreensão do conceito. Ele acreditava que a felicidade não se relacionava apenas à satisfação dos desejos e necessidades do corpo, pois o homem não era só corpo, mas, principalmente, alma. A felicidade só podia ser atingida através de conduta virtuosa e justa. Entre os discípulos de Sócrates, Antístenes acrescentou um toque pessoal à ideia do mestre, considerando que a felicidade era apanágio do homem autossuficiente. Nos setecentos anos seguintes felicidade e liberdade permanecerão vinculadas.

Outro discípulo de Sócrates, Platão, levou a especulação adiante e ligou a felicidade também à ética, de modo que a função do Estado era tornar os homens bons e felizes. Aristóteles, amigo de Platão, mas, segundo suas próprias palavras, “mais amigo da verdade”, criticou o idealismo do mestre, reconhecendo a necessidade de elementos básicos, como a boa saúde, a liberdade e uma situação de bem-estar social para alguém ser feliz.

Com o fim do mundo helênico e o advento da Idade Média, a felicidade desapareceu dos espaços filosóficos. Estando relacionada à vida do homem neste mundo, ela não interessou aos filósofos cristãos como Agostinho de Hipona, Anselmo de Canterbury ou Tomás de Aquino, todos santos da Igreja católica. Para eles, mais do que a felicidade o que contava era a salvação da alma.

Mas na Idade Moderna os filósofos voltaram a se debruçar sobre o tema. Locke e Leibniz, na virada dos séculos 17 e 18, identificaram a felicidade com um “prazer duradouro”. Algumas décadas depois, o iluminista Immanuel Kant a definiu como “a condição do ser racional no mundo, para quem, ao longo da vida, tudo acontece de acordo com o seu desejo e vontade”. No mundo ocidental, a ideia de felicidade ganha lugar de destaque no pensamento político. Buscá-la passa a ser considerado um “direito do homem”, como está consignado na Constituição dos Estados Unidos da América, de 1787.

No século 20, o inglês Bertrand Russell construiu uma obra, “A conquista da felicidade”, usando o método da investigação lógica. Concluiu que é necessário alimentar uma multiplicidade de interesses e de relações com as coisas e com os outros homens para ser feliz. Para ele, em síntese, a felicidade é a eliminação do egocentrismo. Nesta mesma linha, o espanhol Julián Marías publicou em 1987 um livro elogiado pela Academia: “A felicidade humana”, onde estuda a história desse sentimento, da Antiguidade aos nossos dias, ressaltando que “a ausência de reflexão filosófica sobre a felicidade no mundo contemporâneo talvez seja um sintoma de como esse mesmo mundo anda muito infeliz.”

Definir felicidade, como se vê, tornou-se constante desafio no campo da filosofia. No da poesia também. O grande Vinicius de Moraes escreveu a respeito versos magistrais: “A felicidade é como a pluma/ Que o vento vai levando pelo ar/ voa tão leve, mas tem a vida breve/ precisa que haja vento sem parar.” O querido e luminoso Rubem Alves, em pequena entrevista no Youtube, afirmou não acreditar na felicidade e sim em momentos de alegria que nos energizam ao longo da vida. E lembrou alguns de seu próprio repertório: “tomar uma xícara de café com leite saboreando o pão com manteiga; olhar o céu ou uma criança, consumir um prato de sopa bem quente numa noite fria”, etc.

 Pegando carona,  minha lista teria o balbucio dos bebês que descobrem ter voz e começam a emitir sons; orquídeas que surpreendem meus olhos pela manhã porque desabrocharam na madrugada; perfume de canela, cravo e  baunilha espalhando-se  pela casa nos dezembros; nome identificado na lista de aprovação em concurso público muito concorrido; a primeira vez que vi o mar; o encontro com certo aluno depois de trinta anos (e ser reconhecida por ele); uma canção do início da bossa nova;  página de ficção que me leva para dimensões impensadas; até mesmo uma palavra pode me trazer alegria dependendo de quem a diz e como diz. Tantas coisas...

Desejo então aos leitores um Ano Novo com muitos momentos alegres, desses que desenham em nossa face um sorriso e fazem brotar dentro de nós forças para superar as adversidades que são, afinal, uma certidão de vida. Entre uns e outras vamos escrevendo nossa biografia.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras

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