NOSSAS LETRAS

Albergue de girassóis

Albergue é palavra antiga, quase em desuso, com o passar dos séculos substituída por outras como hospedaria e hotel. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 16/12/2023 | Tempo de leitura: 6 min
Especial para o GCN/Sampi Franca

Albergue é palavra antiga, quase em desuso, com o passar dos séculos substituída por outras como hospedaria e hotel. Contrariamente à origem dos vocábulos começados por “al” em português, não é de gênese árabe e sim germânica; mas em todas as culturas desde sempre esteve atrelada ao significado de espaço em que pessoas com carências podem ser acolhidas até se recuperarem. Lugar de passagem e não de permanência.

 Girassóis são plantas conhecidas no mundo todo por sua magnífica inflorescência em amarelo, que a poeta maior, Adélia Prado, diz ser a cor da vida.  Por conta de sua haste, que gira para posicionar a flor na direção do Sol, tombando quando vem a noite, um girassol costuma encantar adultos, crianças, poetas e pintores.

Ao juntar os dois substantivos, albergue e girassóis, para titular seu quinto livro, Baltazar Gonçalves uniu na capa duas percepções que definem o cerne dos poemas e da prosa poética que compõem a obra. Uma é o movimento constante de tudo que vive. Outra, o amor que pode ser terapêutico se sentido na sua transcendência.

Francano nascido às margens do Rio Grande, formado em História pela Unesp, professor, fotógrafo, mediador de leitura, agitador cultural, membro da Academia Francana de Letras, criador da marca “Depois Eu Conta,” quatro títulos publicados e presença em duas antologias lusófonas, pai de Ariel e Julia, avô de Sophia e João, Baltazar Gonçalves é escritor de vasta cultura e invulgar sensibilidade, capaz de se expor com a beleza de um estilo carregado de metáforas novas. Em “Passagens”, colocado entre os textos finais, ele desvela fato importante de sua biografia: “quem me conhece mais de perto sabe que morri algumas vezes/ ou quase/ quase é uma palavra interessante, a vida é mesmo é um quase, /um aposto bem colocado entre vírgulas/portanto às vezes me sinto um quasar/ponto finito mínimo parecido com estrela emitindo sinais de rádio para toda parte”.

A distribuição dos poemas e da prosa no livro dividido em cinco capítulos ficou bem equilibrada. A poesia que cala fundo em nossa humanidade, revelando aspectos difíceis, e tantas vezes recusados, como em “parece fácil negar a dor”, exige um tempo de decantação no espírito de quem lê.  Por isso, intercalar amargo e doce, pesado e leve, preto e branco foi recurso para oxigenar a alma do leitor, permitindo-lhe um reequilíbrio de emoções. Ao visceral “Paralisia,” (“tem esse arame que puxo de dentro na carne/sangra coágulo zoado vibrando, ardendo/ é fio encapado que não conduz energia”), segue-se um tipo de leve haicai: “beira/mar/sem/cais/uma/lágrima/magra/seca/no ar. Além, em “Flora”, o autor surpreende com a última palavra: “ser honesto antes comigo e depois/ consigo abrir-nos de dentro para flora”. Mais à frente, desperta um sorriso diante de “contigo aprendo a envolver as horas de tédio/com duas fatias alegres de mortadela”.

Poetas genuínos brincam com as palavras como as crianças com seus brinquedos. Baltazar Gonçalves não só troca “fora” por “flora” como também mexe nos ditados populares (“fazer da migalhas pão”); às vezes os subverte (te falam que um dia seria da caça, mas todo dia é do caçador); cria palavras (anoitecimentos); junta outras (pétalamaciabruta); constrói aliterações (“falta-me o verbo alvéolo élfico periódico dizimático”); investe em musicalidade (nesse albergue o seu corpo é nossa voz/ braço esticado perna dobrada face corada/ a verdade aguada lança olhos de águia); coloca num título, “Eu derrama”, a síntese de uma mineiridade que tem no processo histórico do país importância imensa.

Por alguns textos ecoam lembranças de autor de muitas leituras. Freud pode ser entrevisto em “todo corpo fala florescendo gestos/quando ilumina recantos da alma”. Mário de Andrade pisca em “quando eu morrer, enterrem meu coração/ onde uma semente de guapuruvu foi esquecida”. Camões é percebido em “tirasse do peito/ as pontas agudas da aflição/e tornasse a vê-lo/completo e derradeiro amor(...)”. Augusto dos Anjos transparece em “preciso de uma tesoura/ que corte qualquer sinal/de singularíssima pessoa”. Chico Buarque tem vez em “eu não bebo desse cale-se”. Carlos Drummond de Andrade vem para alertar “se tem ou não pedra no caminho”. Tavito e Zé Rodrix pedem passagem no início de “Lamparinas Acesas Dentro”: “Hoje eu só quero uma casa na roça/ longe do asfalto por onde se chega devagar”. Até o autor anônimo da “Oração da Serenidade” insinua-se no poema “Só por hoje”, que começa assim: “Tem dias que parecem durar um ano, / em noites que passam muito rápido/o sono não traz o alívio suficiente/ mas é preciso seguir em frente.”

Essa intertextualidade traduz louvável condição de acolhimento a vozes expressivas da nossa literatura, soando como homenagem a autores que, como o próprio Baltazar Gonçalves, honram nossas letras e as fazem brilhar. Seu coração também acolhe os poetas, no albergue que é “passagem aberta para o florir constante.”

Florir e seus cognatos têm presença recorrente no livro, assim como terra e água. A associação entre plantas e seres humanos torna-se pungente no metafórico “Entrelaçados”: “nesta casa de passagem muitos abrigam/alguns viveram tanto em vaso/que não recordam o frescor da terra/o cheiro da nuvem desaguando no chão// nesta casa de passagem as portas abertas/ os descansados da lida fortalecida iluminam// à mesa posta saudamos com palmas/ nossa comunhão depois da tormenta/ a chuva forte da nuvem pesada vibra/um gesto amoroso transborda gratidão.”

Este talvez seja o poema mais expressivo do momento vivido por Baltazar Gonçalves ao se decidir a publicar o livro recém-lançado.  Ex-adicto que passou pela escravidão infernal da dependência química e conseguiu se libertar e se reabilitar, quis fazer de sua obra, construída com linguagem altamente poética, uma celebração pelos anos em que permanece limpo e um convite esperançoso “aos que chegarão no albergue.”

Na orelha lemos que o albergue de que nos fala o autor “não é um lugar estático, está dentro de quem caminha”. Sob este prisma que tem no movimento a sua força, escreve Baltazar Gonçalves em “Passagens”: “(...) tudo fica para trás quando você renasce, o disperso reunido só importa se você consegue evaporar, falando de mim é quando evaporo que sou quem eu é. eu que não acredito mais em deus de altar e calendário celebro a ancestralidade desse poder maior sempre vivo a Poesia”.  E já no final do livro, no penúltimo texto, “Reencontro de Govinda e Sidarta”: “O coração dos homens é um albergue de girassóis, se aberto nele cabe o mundo- é quando o amor oferece abrigo.”

“Albergue dos Girassóis”, publicado pela Kotter Editorial, por sua riqueza temática e formal permite inúmeras leituras, o que o coloca no rol das obras que permanecem, não se exaurem, tornam-se atemporais. A propósito, existe na natureza uma variedade de opala, a pedra preciosa, também chamada girassol, que emite reflexos vermelhos, azuis e amarelos quando movimentada sob a luz solar. Assim este livro: uma joia.

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