A voz poderosa não balançou entre a grife prestigiada da Bossa Nova de João Gilberto e o ritmo da Jovem Guarda de Roberto Carlos: Nelson Ned (1947-2014) seguiu a intuição e apostou no romantismo que lembrava boleros. Ao expandir o repertório para a América Latina, com versões em espanhol, ganhou o coração dos nossos vizinhos. Na Colômbia apresentou-se em estádio para público estimado em 80 mil pessoas que o aplaudiram de pé.
O passo seguinte foi cantar para os sul-americanos radicados nos EUA. De tal maneira sua base de fãs já estava sedimentada por lá em 1974, que o artista foi o primeiro brasileiro a cumprir temporada de quatro noites no renomado Carnegie Hall, em Nova York. Em seguida apresentou-se em países europeus e depois chegou à África: para receber o ídolo, uma multidão de angolanos se deslocou ao aeroporto de Luanda. Diante de toda aquela gente, o artista que no Brasil só era convidado para cantar em churrascarias e clubes periféricos, chegou às lágrimas. Lembrou-se de um provérbio conhecido em várias culturas: “Santo de casa não faz milagre.” Este ditado tornado icônico surgiu de passagem bíblica citada por Marcos 6:4. “Então Jesus lhes disse: “Só em sua própria terra, entre seus parentes e em sua própria casa, é que um profeta não tem honra.”
Confrontado com a realidade, até o final dos anos 90 o cantor optou por turnês fora do Brasil, onde se apresentava para ricos e pobres, famosos e anônimos, operários e intelectuais. Cantou com Júlio Iglesias e Tony Benett em Miami. Em Buenos Aires foi vencedor em famoso Festival. E um dia, que ficou marcado em sua memória afetiva, soube que a seu respeito assim havia se manifestado o escritor Gabriel Garcia Marquez: “Os artistas e intelectuais brasileiros dão risinhos de zombaria ou mudam de assunto quando eu revelo que tenho em casa todos os discos de Nelson Ned.” Haveria elogio mais precioso que ser apreciado por um Nobel de Literatura? E haveria alguma explicação para a zombaria?
Para a primeira pergunta a resposta é “não”. Para a segunda, acredito haver duas considerações além da que intitula esta crônica. Uma delas nos remete ao gênero que definiu o repertório de Nelson Ned, o “brega”, cuja origem Caetano Veloso explica no livro “Verdade Tropical”. O vocábulo resultaria das duas sílabas finais do sobrenome do Padre Manoel da Nóbrega, nome de rua de Salvador onde havia um prostíbulo. A placa com o nome quebrou e por muito tempo ficou só o “brega”, que passou a nomear a zona de prostituição.
Se a gênese da palavra é assim explicada, com o transcorrer do tempo o sentido se tornou abrangente, passando a englobar a música ultrarromântica, a sertaneja e até o pagode. Usado como sinônimo de canção super popular, o brega atendia (e continua atendendo) a um conteúdo emocional que define milhões de fãs. Em suma, é a música que expressa os sentimentos de forma mais intensa e dramática.
Ao lado da breguice vista com certo desdém por intelectuais, existia ainda um problema físico que a muitos mostrava-se impeditivo ao reconhecimento, ao louvor, à fama. Sobre isso escreve o jornalista André Barcinski, autor de nova biografia de Nelson Ned, recém-lançada pela Companhia das Letras. O nanismo, condição que em nada alterava a capacidade criativa, a potência da voz e a performance do intérprete, foi causa de muito preconceito no Brasil. Até Millor Fernandes, o celebrado jornalista, que perdia o amigo mas não a piada, ironizou à sua moda os noventa centímetros de altura do artista. Somos um País onde os preconceitos vão muito além da raça, cor, posição social, e estão entranhados até em pessoas consideradas liberais.
Ao escolher para título da biografia o nome de uma das canções mais conhecidas do artista, “Tudo Passará”, Barcinski pretendeu fazer um aceno à memória do público que continua fiel à voz e interpretação de Nelson Ned, embora saiba pouco de sua vida íntima, marcada pela dor que ele definia como motivadora de sua arte. Sobre isso comentou, em entrevista concedida um ano antes de sua morte: “A Bíblia diz que se você não esmagar a uva, não vai sair obter vinho (...) Eu não creio em criação sem sofrimento. A arte é produto do sofrimento, ela é filha do sofrimento.”
E sofrimento foi o que não faltou na sua existência. Depois da meteórica ascensão internacional, veio a queda vertiginosa patrocinada pelos vícios. Para suportar tanto as dores da alma como as do corpo, ele mergulhou nas drogas. Morreu em Cotia, na Grande São Paulo, aos 66 anos. Sua vida, agora trazida à baila pelo olhar do jornalista que domina a técnica da biografia e tem estilo fluente, nos leva a pensar em Nelson Ned como um gigante brasileiro que superou muitos problemas com a voz extraordinária, o talento para compor e uma interpretação que atraía plateias sempre maiores no Exterior, onde sua estatura física nunca foi vista como algo limitante ou, pior, pejorativo.
Agora biografado pela segunda vez, é certo que, contrariando a letra da música que vendeu 45 milhões de discos, ele não passará.
Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras
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