NOSSAS LETRAS

A prodigiosa memória de Luiz Cruz

Que as palavras desta crônica sejam tanto reconhecimento ao valor de um homem apaixonado por literatura, quanto registro de gratidão de minha parte, escreve Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 25/11/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN/Sampi Franca

“Quem passou pela vida em branca nuvem/E em plácido repouso adormeceu,/Quem não sentiu o frio da desgraça/Quem passou pela vida e não sofreu:/Foi espectro de homem, não foi homem,/Só passou pela vida, não viveu.”

Foi com esses versos de Francisco Octaviano, publicados em 1860, que o escritor Luís Cruz de Oliveira iniciou sua apresentação no “Azul culinária brasileira”, em outubro, no evento intitulado “Literazul”, idealizado pela empresária Adriana Mendonça e por José Lourenço Alves, então presidente da Academia Francana de Letras. Voz compassada, tendo como fundo musical o violão de Valdir Rosa, o declamador trouxe à baila o valor das experiências dolorosas e a complexidade da existência humana.

O público que lotava o local permanecia com o último verso ressoando nos ouvidos quando se viu levado a outro patamar, menos filosófico que “Ilusões da Vida”.  Prosaico e plástico, o poema “A Orgulhosa”, de 1895, assinado por Trasíbulo Ferraz Moreira, baiano ainda celebrado no Nordeste, historiava um amor contrariado. A voz de Cruz, naquele momento tisnada pela tristeza, introduziu a narrativa: “Ainda há pouco pedi-te, / pedi-te para valsar.../ disseste-me- és pobre, és plebeu;/Não me quiseste aceitar!” Ao som do violão, o declamador conferia aos poucos leve ironia à saga da rejeição em ritmo de crescente clímax. O poema termina com o cavalheiro perfilando a dama como “soberba, inculta e banal”. 

Chegava então de longe, dos espaços europeus, mais precisamente da Alemanha, o último dos românticos: Heinrich Heine. Seu poema, “O Tédio”, da ordem do lirismo melancólico, foi traduzido em português por doze autores. Para sua apresentação Luiz Cruz pinçou a versão de Machado de Assis. Duas personagens, o paciente e o médico, conversam sobre uma doença. De maneira lenta, Cruz entoa desalentado a queixa do primeiro: “A doença que me punge e esteriliza a mocidade e o espírito/ Resulta de uma chaga que nunca cicatriza.” Mais à frente, em tom didático, responde o doutor: “-O amigo tem razão! Padece realmente./ Contudo, a enfermidade, o morbuz que o devora/ É um produto fatal do século de agora.” O tédio, mal do fim do século XIX, é o sentimento que a maioria dos tradutores em língua portuguesa levou para o título, no lugar do original “O Palhaço”. Belo e emocionante poema, a lembrar, sob o ponto de vista do conceito, um soneto que deixa para o final a revelação bem marcada pelo declamador.

De volta à literatura brasileira, e ao Nordeste, a vez agora era a do pernambucano Mauro Mota, mas a voz era do Cruz. Com tintas modernistas descreviam-se a precária condição feminina e o abuso machista. O nome do poema? “Boletim Sentimental da Guerra no Recife”. Ouvindo Cruz na descrição das meninas seduzidas durante a Segunda Guerra por soldados da base militar de Piedade, dá vontade de chorar: “Ingênuas meninas grávidas,/ o que é que foste fazer?/apertai bem os vestidos/pra família não saber./Que os indiscretos vizinhos/vos percam também de vista./Saíste do pediatra/ para o ginecologista”.

Para fechar a apresentação, o autor escolheu um dos poemas mais conhecidos de Carlos Drummond de Andrade, parte do livro “A Rosa do Povo”, com criações dos anos 43-45. Chama-se “O Caso do Vestido”. A declamação torna-se pungente ao trazer a história de um triângulo amoroso em família provinciana e religiosa do começo do século XX. Contada em forma de diálogo entre uma Mãe e suas Filhas, vozes femininas, exigiu do declamador nuances diversas para traduzir o peso do patriarcalismo em nossa cultura e o mistério da imaginação.

Foi aplaudido de pé, assim que encerrou seu número. Sentíamos, todos que ali estávamos e amamos literatura, todo seu empenho; o cuidado na escolha dos textos; o prazer da parceria com o músico Valdir Rosa. Suprassumo da delicadeza, algo que não se vê com frequência em nosso tempo, Luiz Cruz ofereceu a cada um dos presentes um livreto de capa vermelha, edição de bolso, com os textos selecionados. Cinco poemas; 395 versos memorizados com o verdadeiro sentido etimológico do verbo: sabemos de cor o que faz morada em nosso coração. Sei que não é a primeira vez que Luiz Cruz surpreende com sua memória de elefante. Já nos deu mostras disso em outras ocasiões, com poemas até mais longos, como “Porque hoje é sábado”, de Vinícius de Moraes. Ouvir o professor, ficcionista, cronista, poeta, agente cultural, acadêmico da AFL declamar, sem nenhum tropeço e com muita emoção, é sempre um privilégio.

Que as palavras desta crônica sejam tanto (mais um) reconhecimento ao valor de um homem apaixonado por literatura, quanto registro de gratidão de minha parte, por ter compartilhado momentos inesquecíveis, oferecidos com generosidade por um escritor que tem mais de trinta títulos publicados e vive em constante movimento de escrita e divulgação de livros e autores.

Um gigante, o Luiz Cruz de Oliveira.

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras

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