NOSSAS LETRAS

Racismo em nome de Deus

Por Baltazar Gonçalves | Especial para o GCN/Sampi Franca
| Tempo de leitura: 3 min

O materialismo histórico é conjunto de ferramentas teóricas usadas por quem pesquisa a ciência História. Basicamente, a arte de fazer as perguntas certas para o objeto assunto pesquisado: Quem, Quando? Onde? Por que? Quais consequências imediatas? Quais consequências a longo prazo? A quem ou grupo interessava? Quem disse (fontes): onde está escrito, desenhado, pintado, filmado...? Portanto, é um modelo científico aplicado por quem faz a História, a narrativa escrita com base nas relações entre padrões de repetição no tempo, os recortes estabelecidos na conjuntura dada, e as forças determinantes que atuaram no passado estudado. É o olhar para as engrenagens em movimento movidas pelas ações dos homens no tempo e no espaço, almejando a partir das condições materiais que produziram o que se convenciona chamar de fatos, eles mesmos produtos e recortes da atenção dos vivos e suas mentalidades.

O Preconceito de cor, etnia e origem é um mal social que persiste em nosso país e em nossa cultura. Na prática podemos dar um exemplo clássico. Duas pessoas com a mesma idade, sexo, grau de escolaridade e condição socioeconômica que concorrem a uma mesma vaga de emprego no Brasil passam por um simples e objetivo processo de seleção: a cor. Duas pessoas que apresentem as mesmas condições intelectuais, sociais e físicas para ocupar uma vaga de vendedor, por exemplo, serão selecionados pelo quesito boa aparência, que no Brasil significa ser branco, e de preferência de origem caucasiana. Esse é um fenômeno que existe em todos os países em que brancos, negros, índios e mestiços convivem.

A ética de um povo é construída pela ideologia dominante. Como já disse Nelson Mandela “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender e, se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.” Desse modo a ética cristã é uma das bases responsáveis pela construção dessa ideologia.

Quando da época das colonizações a Igreja foi grande incentivadora econômica do empreendimento escravista, e tinha que justificar as ações da escravidão biblicamente. Para isso recorreu-se ao mito da Arca de Noé. A ética cristã, não é a ética de Jesus, mas sim aquela construída pela Igreja Romana a partir da releitura, reinterpretação e adaptação da cultura e da ética hebraica aos objetivos da Instituição religiosa romana.

O mito de Cam, uma pequena passagem do Velho Testamento, ainda ressoa viva influenciando lideranças pragmáticas e doutrinadoras oportunistas da fé. Trata-se de uma interpretação do conto bíblico em que uma maldição é lançada pelo personagem Noé contra seu próprio neto. A apropriação dessa narrativa e a consequente distorção de intenções políticas incentiva o racismo de fundo religioso e a perseguição contra religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda.

Após o dilúvio que daria fim ao caos em que se encontrava a humanidade, os filhos de Noé, Cham ou Cam, Sem e Jafé, foram os responsáveis por repovoar a terra com seus descendentes. Cada um cuidou de repovoar cada continente dos três conhecidos no velho mundo. Sem repovoou a Ásia. Jafé a Europa e Cham a África. O fato que justificou a inferioridade dos Africanos foi uma passagem bíblica em que Cham, seu filho Canaã e toda sua descendência foram amaldiçoados por Noé. Eis o recorte no capítulo 9 dos versículos 18-27 no Gênesis: após beber vinho, Noé ficou nu dentro de sua tenda, dormindo. Cham, pai de Canaã, viu a nudez de seu pai e chamou os dois irmãos, Sem e Jafé, que tomaram um manto e o cobriram. Ao acordar, Noé soube do acontecido e pronunciou o terrível veredicto: “maldito seja Canaã, que ele seja para seus irmãos o último dos escravos. Bendito seja Javé, o Deus de Sem, e que Canaã seja seu escravo e que Deus dilate a Jafé, e que Canaã seja seu escravo.

Talvez a maior importância em aprender mais sobre a História seja a tomada de consciência de que, se algo aconteceu pode acontecer de novo. Pois como já dizia a sabedoria popular "não existe nada de novo debaixo do Sol".

Baltazar Gonçalves é historiador e escritor membro da Academia Francana de Letras

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Comentários

2 Comentários

  • JOIAS DAS ARÁBIAS 19/11/2023
    Muito bom o texto. Aliás, façamos a comparação entre os moradores de ruas, a maioria formada de pretos e, a gerência nos bancos e grandes empresas, constituída por brancos. Mas, certamente críticas surgirão por parte dos bolsonaristas que se julgam os puros, os verdadeiros cristãos, os fiéis as suas famílias, mesmo que muitos desses homens puros vivam pulando a janela. E, se sentirão ofendidos com a imagem de um Cristo negro, pois para eles Jesus é branquinho e de olhos azuis.
  • Jales 18/11/2023
    O artigo termina afirmando que o autor é um historiador. Ora, um historiador deveria conhecer a história e, ao contá-la deveria ser fiel aos fatos. Por exemplo, \"A Igreja Católica, desde o século XV, tomou posição contra a escravidão. Em 13 de janeiro de 1435, através da Bula Sicut Dudum, o primeiro documento que trata explicitamente da questão, o Papa Eugénio IV mandou restituir à liberdade os escravos das Ilhas Canárias. Em 1462, o Papa Pio II (1458-1464) deu instruções aos Bispos contra o tráfico negreiro que se iniciava, proveniente da Etiópia. Por sua vez, o Papa Leão X (1513-1521) despachou documentos no mesmo sentido para os reinos de Portugal e da Espanha. Nos séculos seguintes, contra a escravidão e o tráfico se pronunciam também os papas Gregório XIV (1590-1591), por meio da Bula Cum Sicuti (1591), Urbano VIII (1623-1644), na Bula Commissum Nobis (1639) e Bento XIV (1740-1758) na Bula Immensa Pastorum (1741). No século XIX, no mesmo sentido se pronunciou o Papa Gregório XVI (1831-1846) ao publicar a Bula In Supremo Apostolatus (1839). Em 1888, o Papa Leão XIII, na encíclica In Plurimis, dirigida aos Bispos do Brasil, pediu que apoiassem a abolição da escravidão no País.\" O trecho entre aspas foi tirado do site: https://noticias.cancaonova.com/brasil/desde-o-seculo-xv-igreja-catolica-toma-posicao-contra-a-escravidao/#:~:text=A%20Igreja%20Cat%C3%B3lica%2C%20desde%20o,os%20escravos%20das%20Ilhas%20Can%C3%A1rias. Contudo, se voltarmos à origem da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo sobre a profissão de fé de São Pedro, o Primeiro Papa, encontraremos na carta de São Paulo aos Gálatas, Capítulo 3, versículo 8 a seguinte citação: \"Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus.\" O que o Apóstolo está afirmando aqui é que a condição individual, seja ela relacionada à nacionalidade, à condição social ou ao sexo, está submetida à nova condição de batizado a que o Apóstolo faz referência no versículo anterior, ou seja, o Batismo nos iguala na condição de filhos de Deus mesmo que os outros aspectos de nossa vida revelem diferenças de ordem material. Parece-me que o maior problema no artigo do srº Baltazar Gonçalves é o princípio sobre o qual ele se assenta. O autor começa tentando dar credibilidade àquilo que, segundo ele, é um método científico de estudo da história: o materialismo histórico. Ocorre que o materialismo histórico é sim um método, mas que, ao contrário do que sustenta o srº Baltazar, este método não se pauta pelos fatos, mas sim por uma leitura materialista (marxista) dos fatos, ou seja, o materialismo histórico nada mais é que um anacronismo. Ele é uma leitura enviesada da história. Isto significa que o indivíduo que o pratica já tem uma visão, uma opinião sobre o valor dos acontecimentos e o que este indivíduo fará será nada mais nada menos que contar a história de tal forma que sua narrativa demonstre aquela opinião que ele já tinha desde o início. Para isso negligenciam-se acontecimentos, encobrem-se fatos, personagens são \"esquecidos\" outros ostracizados... Enfim, o materialismo histórico é uma fraude porque parte da negação de uma das coisas mais evidentes na existência humana: o homem não é só matéria. Ele é também um ser espiritual. Tem uma alma imortal. Por último, aproveito para corrigir o autor quanto àquilo que ele chamou de dito da sabedoria popular: \"Nada há de novo debaixo do sol\". Na verdade, srº Baltazar, esta é uma citação bíblica: Ecle 1, 9. Um historiador deveria saber citar suas fontes, o srº não acha?