NOSSAS LETRAS

Gatos e gatas

No Egito dos faraós os gatos alçaram status de semideuses. Um culto poderoso celebrava Bastet, corpo de mulher e cabeça de gata. Leia a crônica de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 11/11/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN/Sampi

No Egito dos faraós os gatos alçaram status de semideuses. Um culto poderoso celebrava Bastet, corpo de mulher e cabeça de gata. Por séculos esses animais foram tão respeitados que matá-los significava sentença de morte. São dados concretos, encontrados em papiros expostos ano passado numa exposição do Museu do Brooklin sob título “Felinos Divinos: Gatos do Antigo Egito”.

De seu lugar de domesticação, esses animais foram levados escondidos à Europa por viajantes que se apanhados em flagrante eram condenados a penas altas de privação da liberdade.  Assim se passaram os séculos. 

Com a Idade Média envolta em obscurantismos, propagou-se na Europa uma fake news criada por grupo religioso. Impôs-se a falsa ideia de que os gatos eram seres demoníacos e tinham associação com bruxas. Foi o suficiente para desencadear extenso massacre de bichanos, mortos a pauladas, esfolados vivos, jogados nas fogueiras. A população felina foi quase dizimada. Como resultado, o rato, que tinha no gato um predador e fator imprescindível para seu controle, ficou livre para se reproduzir. Por conta disso, europeus conheceram o flagelo da peste que, transmitida pela urina do rato, ceifou a vida de milhões de pessoas. A natureza não reage; ela se vinga- disse Jacques Cousteau.

Aos poucos a luz da ciência foi dissipando as trevas da ignorância e, cientes do papel do gato no contexto da saúde humana, homens, mulheres e crianças decidiram cuidar dos bichos. Assim, a população voltou a crescer rapidamente. Hoje, no ranking dos países com as maiores populações estão os EUA, com 74; a China, com 53; a Rússia, com 18. Milhões. O Brasil encontra-se no quarto lugar, com 13 milhões.

O número aumenta também em outras latitudes. Nem precisamos falar de animes como “As Super Gatinhas” ou do poder da marca “Hello Kitty” para saber que os japoneses estão adotando cada vez mais gatos, a quem têm sido reservados lugares e tratamentos especiais. Até um dia do calendário, 22 de fevereiro, foi marcado para homenageá-los oficialmente. Chama-se Neko-no-Hi. O leitor estará achando isso estranho num país de dimensão territorial pequena, onde a maioria dos humanos vive em espaços reduzidos?  Se positivo, prepare-se e encare essa: o Japão tem três ilhas dedicadas aos gatinhos. A mais famosa é Aoshima, onde a proporção é de seis bichanos para cada humano.

Voltando à exposição do museu nova-iorquino acima citado, seu curador, um antropólogo, escreveu que foi através da observação atenta da dualidade dos gatos que os egípcios vieram a admirá-los. Para eles, os felinos combinavam graça, suavidade e afeto com agressão, rapidez e perversidade. Caso dessem um passo além, os observadores daquela época teriam descoberto que eles, os gatos, tinham características inerentes aos humanos. Pois quem somos, senão criaturas complexas, duais? Só que ao contrário dos bichos, vamos tentando, na medida do possível, identificar, entender e aceitar nossos aspectos contraditórios, tarefa para a qual uma só vida não basta.

Tenho pensado que sejam essas similaridades com o humano que levaram tantos artistas a conviver bem com os gatos e a transformá-los em personagens: o cartunista Pat Sullivan, que criou o agilíssimo  Félix; o cineasta Blake Edwards, que levou um gato sem nome para  “Bonequinha de Luxo”; o poeta/prosador  Allan Poe e seu perturbador conto “Gato Preto”; o diretor Tom Hooper, do musical  “Cats”, sucesso mundial; o ficcionista Charles Perrault perfilando  seu icônico Gato de Botas; Lewis Caroll desenhando o sorriso congelado do gato em “Alice no País das Maravilhas”; a prosadora Lygia Fagundes Telles criando no livro “ As horas nuas”, um gato, Raul, que reflete sobre o comportamento bizarro dos humanos; a compositora Nara Leão, co-autora de Chico Buarque na peça “Os Saltimbancos”, que encantou  o público dos anos 70 com os versos: “Nós, gatos, já nascemos pobres/ Porém, já nascemos livres/Senhor, senhora ou senhorio/ Felinos, não reconhecerás. Machado de Assis não levou nenhum para sua ficção, mas disse a respeito o seguinte: “ O gato, que nunca leu Kant, é talvez um animal metafísico”.

Introspectivos, elegantes e amigos do silêncio, amantes acima de tudo da liberdade, gatos e gatas parecem nos entender ainda que só saibam se expressar por miaus, olhares e movimentos de rabo. Gostam de um chamego, mas nem sempre. E quando cismam diante de um movimento, ruido, voz, cheiro, sabem sinalizar com orelhas e narinas. Entretanto, o que poucos sabem é que eles sofrem de um tipo de amnésia, o que os deixa confusos se retirados de seu lugar habitual ou quando se perdem. Como para se afeiçoar a alguém é preciso se vincular também pela memória, esse traço talvez explique o fato de que, ao contrário de um cão, um gato parece estar sempre desdenhando seu dono, sua dona. 

Dono, dona? Não. O politicamente correto está nos exigindo “tutor, tutora”. Foi o que aprendi com Fátima e Paula, mãe e filha, duas mulheres incríveis, empáticas, alegres, que encontraram minha gata Luna e cuidaram dela durante 23 dias, até me localizarem. Tutora, claro. Dona, não. “Ninguém é de ninguém”: não seria essa a frase mais definidora de um gato, caso falasse?

Aliás, razão tinha a querida romancista Colette, ao escrever que “cães pensam que são humanos, gatos acham que são Deus.”

Sonia Machiavelli é professora, jornalista, escritora; membro da Academia Francana de Letras.

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