Vivemos o século do terror e das trevas; desde o onze de setembro o modelo de pavor mobiliza corpos e almas desestabilizando a paz. Como se ainda fosse possível atravessar mais nações e expropriar terra e costumes, a nova cruzada espalha medo e sangue, crianças mortas nos kibutz, pais desesperados clamam por um deus que não virá pois tudo foi soterrado. Na Idade das Trevas situada na Idade Média, “cruzada” era um termo utilizado para designar qualquer dos movimentos militares de inspiração cristã que partiram da Europa Ocidental em direção à Terra Santa e à cidade de Jerusalém, com o intuito de conquistá-las, ocupá-las e mantê-las sob domínio cristão. Em 2023 assistimos impotentes ao primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, permanecer déspota no poder por quase trinta anos e deflagrar o genocídio anunciado: a Palestina corre o risco de desaparecer do mapa.
Não queremos, mas a realidade é a guerra. Ver os destroços sólidos depois do bombardeio não é nada relativo, é a vida como ela é se revelando on line full time. O bacana-acadêmico de toga e canudo levanta a bunda de sua cátedra e saca logo o clichê "vivemos tempos líquidos", e logo se cala porque percebe a banalidade da filosofia quando a precisão da bomba faz milhares de baixas num único ataque. Que as atrocidades da guerra são a face mais nítida da realidade torna a comédia humana uma tragédia imposta, melhor revelada sempre na brutalidade das disputas por território onde construir a casa própria. Desde quando?
A resposta está no quanto cabe de História na mente fechada. Já teve um professor ou professora que disse que você deveria aprender a lição e levar o conhecimento para a sua vida? Que você sofreia menos se soubesse as origens da sua própria história e dela tivesse orgulho? Pois é, mas você foi aquela ou aquele que respondeu: eu prefiro saber apenas das coisas leves. O modo mais prático de fechar a mente para a realidade enquanto se prepara a guerra é dar distrações e péssima educação nas escolas.
A verdadeira ancestralidade de todos os povos é a violência, o assassinato em massa e a expansão sobre a terra conquistada, a terra que na versão dos vencedores é chamada de "prometida". O delírio da febre-paz torna-se passatempo entre guerras, o sonho de quem deseja continuar dormindo num paraíso mítico. Quem escreveu essa história? Você nunca se pergunta por que os vencedores contam a melhor versão do genocídio? Meus pais também herdaram a história de Abraão, o peregrino devoto que teria recebido a promessa de ter tantos filhos quanto as areias nas praias, patriarca do quase indefeso e pequeno David que derrotou o gigante palestino Golias. Percebe como a Literatura oficializada, registrada em cartório atemporal feito testamento incontestável, cria o escopo imaterial simbólico que justifica a força e a ganância: a guerra?
Se a palavra tem poder, uma vez escrita muito mais; e se difundida por companhias mercantis de jesus, muito, muito mais. A carta de Pero Vaz de Caminha sobre o achamento do futuro Brasil se sobrepõe à cultura oral milenar dos povos nativos porque a elite dominante dá à escrita a qualidade de registro e documento oficial lavrada em cartório, e todos os súditos aceitam para ter paz. Quando os desapropriados (indígenas palestinos ou pretos de qualquer cultura e tempo) quebram o cartório para queimar as indevidas certidões de posse são chamados de arruaceiros que não respeitam o direito à propriedade privada, ou terroristas hoje em dia, e então somos obrigados a falar de guerra porque a violência sofrida antes tornou-se insuportável ao ponto da realidade se mostrar crua.
Se ainda não for a hora de explodir Gaza exterminando 2 milhões de palestinos como os EUA fizeram possível em Hiroshima-Nagazaki, será quando tivermos a ilusão de paz para criarmos coletivamente uma fábula baseada em preceitos divinos e dogmas religiosos que justifiquem uma versão bonitinha mas ordinária do extermínio. Minha ironia é bem amarga, desconfio de quem fala de deus levianamente, quem usa a ideia de um deus amoroso mas também poderoso, essa contradição "amor e poder bélico", releva as piores intenções. Deus não está do lado dos vencedores, do lado dos vencedores está a habilidade de escrever a melhor versão da história. E será a versão dos que invadiram, cresceram e se multiplicaram sobre a terra para dominá-la e destruir quem resiste insistindo narrar diferente e contar o que se passa.
O deus da guerra só é único e poderoso para quem nele acreditando lhe-dá vida. Esse deus não existe igual para todos. Quem insiste no ódio em tempos de paz se prepara para a guerra. Para quem vive de poesia, em delírio de paz, existe um deus maior que este mínimo das sinagogas mesquitas e catedrais: o amor.
Baltazar Gonçalves é historiador e escritor membro da Academia Francana de Letras.
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