NOSSAS LETRAS

Um escritor de milhões de leitores

Contabilizar mais de 700 mil cópias vendidas (...) faz mensurar o alcance, o valor e o reconhecimento de Itamar Vieira Junior. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 21/10/2023 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN/Sampi

Contabilizar mais de 700 mil cópias vendidas, e portanto ser lido por mais de três milhões de brasileiros e estrangeiros, tendo em vista que um exemplar chega a pelo menos cinco leitores, faz mensurar o alcance, o valor e o reconhecimento de Itamar Vieira Junior, autor do romance “Torto Arado”.  Lançado em 2019, o livro traz narrativa marcada pelas vozes femininas das irmãs Bibiana e Belonísia, e pela manifestação de uma “entidade encantada”, Santa Rita Pescadeira.  A ficção mostra em três bem costuradas partes (“Fio de corte”, “Torto Arado” e “Rio de Sangue”) histórias coletivas afetadas por desigualdades raciais, sociais e de gênero. Também traz à tona a resistência dos quilombolas, incansáveis nas suas pelejas, comoventes no apego à terra, essa palavra tão próxima de arado, que aparece no título forte, instigante, simbólico.

Um arado, instrumento já quase arcaico neste século XXI, em boas condições deveria operar nas camadas iniciais do solo, nas quais as plantas se desenvolvem, propiciando com o movimento de seus dentes de ferro melhores condições de aeração, infiltração, armazenamento de água e fertilidade. Mas um arado torto não tem serventia, pelo contrário: ele detona a terra, impossibilitando a boa nidação das sementes. Usado pelos antepassados das protagonistas, atravessa o enredo como símbolo da herança das desigualdades e da servidão; e é a primeira palavra que Belonísia tentará pronunciar algum tempo depois do acidente que a incapacitará para a fala, mas não para a comunicação. Sob o signo da obsolescência, o arado torto pode ser entendido como a permanência de um passado colonial, patriarcal, escravista, elementos fundantes da sociedade brasileira. E, sim, a inspiração pode ter vindo também dos versos de Tomás Antônio Gonzaga, na Lira XIV, de Marília de Dirceu:

“Qual fica no sepulcro,/Que seus avós ergueram, descansado;/qual no campo, e lhe arranca os frios ossos/ Ferro do torto arado”.

Depois do título, a trama. Ela percorre as vidas e conta as lutas de personagens que representam um tipo de brasileiro que a maioria dos brasileiros brancos letrados de classe média e alta olham com desdém- quando olham. Porque o que veem os deixa desconfortáveis. São seres parecidos com os cortadores de cana que José Lins do Rego observou nos engenhos pernambucanos e com os quebradores de cacau que Jorge Amado foi buscar no Recôncavo. Ítalo Veira Junior viu nos sertões do Maranhão e da Bahia trabalhadores na mesma situação de exploração, e miséria. Homens, mulheres e crianças sobrevivendo a pequenas tragédias, de que é exemplar a forma como Belonísia perde a condição de falar por conta de gesto impensado da irmã Bibiana, ou a grandes tragédias que resultam de organização social que sempre privilegiou o branco e puniu o preto, o índio, perfilando-se racista, geração após geração, até nossos dias. Tragédias deixam marcas nos corpos e nas mentes. Podem calar não só uma pessoa, mas várias gerações.

“Torto arado” é romance forte, consistente, duro ao retratar uma realidade de sofrimentos na zona rural do Brasil profundo. Mas fixa também algumas alegrias, como a de colher e plantar, ainda que os melhores frutos sejam usurpados pelos donos das terras. E, principalmente, é uma história de coragem - da avó, do filho, da nora, das netas, daquele que volta para elucidar os que ficaram na vida de submissão, miséria e medo. Um medo ancestral, assim descrito:

 “O medo atravessou o tempo e fez parte de nossa história desde sempre. Era o medo de quem foi arrancado do seu chão. Medo de não resistir à travessia por mar e terra. Medo dos castigos, dos trabalhos, do sol escaldante, dos espíritos daquela gente. Medo de andar, medo de desagradar, medo de existir. Medo de que não gostassem de você, do que fazia, que não gostassem do seu cheiro, do seu cabelo, de sua cor.”

Permeada pelo Espírito dos Encantados que guia  os personagens em suas trajetórias, acudindo-os nos momentos de grandes aflições, a saga tem no  jarê, religião de matriz africana, típica da Chapada Diamantina, o seu fio condutor. O romancista procede assim a um resgate de manifestação religiosa que vem de séculos e corre o risco de desaparecer. Ainda viva na Chapada Diamantina, ela é similar em diversos aspectos aos candomblés baianos do litoral, guardando traços derivados do povoamento da região, baseado na exploração de pedras preciosas. Na fazenda Água Negra, onde os personagens sofrem em suas casas de barro que desmancham e não são vistos como pessoas e sim como coisas pelos donos da terra, a casa de jarê é um lugar de conforto onde dores de todo tipo podem encontrar algum alívio. 

 “Um grande romance se desenvolve no plano do conflito entre a personalidade de seus personagens e forças aparentemente incontroláveis contra as quais os indivíduos são chamados a lutar na busca pela afirmação de si mesmos”, consideram alguns críticos. “Torto Arado” é um grande romance, porque além de contar uma história que seduz o leitor desde as primeiras linhas, é um relato que o autor decidiu escrever quando, formado geógrafo e já funcionário do Incra, conheceu as realidades de indígenas, quilombolas, ribeirinhos e assentados no sertão baiano e maranhense. Inspirado nessas vivências, traduziu de forma literária as lutas e dilemas enfrentados em busca de liberdade, autonomia, verdade, solidariedade, valores que conferem ao ser humano de qualquer latitude um sentido de vida mais profundo. 

 “Ao longo de quinze anos, aprendi muito sobre a vida no campo e vi um Brasil muito diverso do que vivemos cotidianamente nas cidades. Existe uma vida muito pulsante no campo, uma vida que está em risco, porque essas pessoas vivem em constante conflito na defesa de seus territórios”, contou Vieira Junior ao jornal El País, que o entrevistou em dezembro de 2020.

Neste sábado, 21 de outubro, quem vai entrevistá-lo é a escritora Vanessa Maranha, que conversará com o autor a quem foram concedidos prêmios importantes como Jabuti, Oceanos e Leya, e que já teve seu romance de estreia traduzido para vinte idiomas. Será às 16 horas, no Instagram. Para quem gosta de literatura, um acontecimento feliz, um privilégio.

Este encontro compõe com outros o evento Criação Literária/2023, que tem apoio da FEAC/Franca, via Bolsa Cultura.  Já tivemos oportunidade de entrar em contato com os escritores Menalton Braf (29/07); Maria Valéria Rezende (26/8); Micheliny Verunschk (23/09). Todos, incluindo Vanessa Maranha, que mediou os encontros, acresceram com seu estilo e expressão literária a bagagem cultural e humana de cada um de nós que os acompanhamos.

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