NOSSAS LETRAS

Urubus, Cigarras e Formigas

Algo se quebrou dentro. Pessoas não são plantas em vaso. Levanta e anda, faz o certo pelo motivo certo e ama os defeitos que cultiva. Leia o artigo de Baltazar Gonçalves.

Por Baltazar Gonçalves | 07/10/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN/Sampi

Algo se quebrou dentro. Pessoas não são plantas em vaso. Levanta e anda, faz o certo pelo motivo certo e ama os defeitos que cultiva: suas imperfeições são singularidades. Sejamos realistas sobre as redes sociais, vivemos numa espécie de mundo transparente como se nós fossemos plantas numa estufa: você escolhe ser samambaias ou girassol?! No "quem segue quem", estranhos sabem mais sobre a nossa vida do que alguém próximo jamais soube. Aquilo que não sabem, imaginam como no seu íntimo desejam.

Diferente dos que dizem serem modestos despretensiosos quando escrevem, talvez para se desculparem por antecipação de qualquer juízo de valor para com o que escrevem, da minha parte se escrevo é quando estou no lugar em que meu espírito detido é vasto campo de batalha: me deixo cair das alturas da vaidade e da prepotência pois intuo a grandeza da herança que circula em nossas letras. Penso como Silviano Santiago quando diz que escritores roubam o significado da vida material para oferecer – em troca humilhante e humilhada – o sentido do absoluto na criação literária. Mas há quem passe a vida inteira negando a morte, intempéries do caráter ou os nós das relações humanas. Quando escrevo, minha intenção é mexer naquilo que me incomoda. Ofereço a quem possa ler o mesmo que me insulta, mas que haja um propósito nesse insulto. Aceitar a vida como ela é, só é possível se a reinventarmos com algum delírio poético, pra mim pelo menos. Gosto de perturbar a ordem das coisas que a maioria das pessoas aceitam ser eternas, imutáveis. Prefiro que o discurso corrente seja flagrado impiedoso para que lendo perceba o ponto em que a humanidade declina em nós.

Gostemos ou não da superexposição, se nos afastamos do coletivo para evitar desgastes a sensação de invisibilidade pode incomodar. Como lidar com as expectativas que os outros têm de nós? Aceitando nossas imperfeições é uma possibilidade. Aceitar as coisas como são e a maneira como nós somos, o que não é o mesmo de resignar-se, pois “aceitar” traz em si alguma sabedoria para distinguir o que se pode mudar alinhando coragem à ação, viver nossas vidas de acordo com princípios espirituais que nos trouxeram bem até aqui. Quanto mais seguros nos sentirmos com o nosso corpo, nossa expressão, o nosso modo de estar no mundo e as decisões que tomamos, menos preocupação teremos com as opiniões dos outros. Noutras palavras de Machado de Assis, o maior escritor brasileiro, em suas Memória Póstumas de Brás Cubas: “... descobri uma lei sublime, a lei da equivalência das janelas, e estabeleci que o modo de compensar uma janela fechada é abrir outra, a fim de que a moral possa arejar continuamente a consciência”.

Vivemos a civilização da angústia, são muitos estímulos externos e forças interiores recalcadas no inconsciente que (se irrompem ou se embrutecem a couraça que os foça) desmontam o sujeito, o ego, o eu. Quando você não consegue ser honesto contando sua história, os outros te tornam invisível e te calam. O "eu" fica fora de si, e toda realização fica para depois: depois eu conta, depois eu ama, depois eu faz de conta. O momento de ser completo mesmo sendo imperfeito é AGORA.

Envelhecer é um privilégio dos que sobrevivem, sem drama: se olhar em volta, são muitos os caminhos vãos. Eu me perguntei, como vou chegar aos 60 se não imaginava que chegaria na metade desse percurso? Como você vai chegar aos 30? A inspiração está nos que vieram antes, naqueles que se reinventaram na passagem de cada fase da vida. Toda mudança na realidade exterior começa realmente dentro da gente, porque só dando o primeiro passo é que a perspectiva do olhar muda. Como você vai chegar aos 70? É bom se relacionar com pessoas de todas as idades, esse papo de que “antigamente que era bom" ou "essa geração atual está perdida" só te envelhece, neurótico histérica. O bom da viagem-vida é aceitar ser passageiro, e viver só por hoje porque funciona.

Se hoje fosse mesmo domingo, eu diria que domingo é dia do senhor, também dos servos e lacaios. Na fila dos seguidores há descrentes fiéis. Só as árvores são completamente honestas, falam de tudo em silêncio. Urubus tomam sol entre penas, e meu pensamento alonga-se no arco de suas asas pretas. O sol da manhã sobre a mata dilui toda névoa do calor imenso. O canto das cigarras traduz o choro dos famintos e a euforia dos que na abundância chafurdam. No dia seguinte, para as formigas não tem ressaca. Depois da chuva, o trabalho na terra continua - também o sentimento amoroso de pertencer e ser pertencido.

Baltazar Gonçalves é historiador e membro da Academia Francana de Letras, está lançando “Albergue de Girassóis”, seu 5º livro pela Editora Kotter

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