NOSSAS LETRAS

Sandy, Lucas e Tolstoi

É muito bom quando artistas, especialmente os de forte apelo popular, trazem a público uma obra expressiva como esta de Tolstoi. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 07/10/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN/Sampi

Sandy e Lucas Lima, casados há 24 anos, ela cantora, ele músico, ambos pertencentes a famílias do meio artístico, e conhecidos em todo o país porque começaram ainda crianças nos palcos, resolveram separar-se. Como vivemos na era da espetacularização, eles deram a notícia aos fãs pela via das redes sociais. Também foram juntos, de maneira civilizada, ao programa de Serginho Groisman, sábado passado, e contaram porque decidiram não continuar mais juntos. Nada de apimentado, como seria de se supor dos adocicados artistas. “Foi o desgaste dos anos”, resumiram candidamente antes de trocarem um beijinho. O auditório aplaudiu. Olhando a cena pensei que nunca tinha visto separação tão asséptica.

Seria mais uma notícia de trinta linhas nos cadernos de variedades ou dez nos sites de celebridades, se Lucas não tivesse postado no Instagram, no começo de setembro, dias antes do divórcio vir à tona, um livro que acabara de ler e o tinha impactado. A respeito, ele escreveu: “Que livro forte. Deu uma chacoalhada legal no Lucão.” No post, metade do rosto de Lucas Lima aparecia encoberto pela capa da novela que León Tolstoi escreveu em 1886: “A morte de Ivan Ilitch”.

O enredo gira em torno de funcionário público de meia-idade que leva vida confortável e convencional. Ambicioso, preocupado com status, obcecado por seu trabalho e promoções, segue trajetória típica da classe média da sua época. Logo no início o leitor é informado sobre as dores que Ivan sente, sintoma de uma doença grave que não é nomeada. Com o avanço do mal, ele começa a refletir sobre o sentido que conferiu à sua existência: “Talvez eu não tenha vivido como deveria, ocorreu-lhe de repente. Mas como, se eu sempre fiz o que deveria fazer?” Cuidado pelo humilde empregado Guerássim, único que permanece ao seu lado, descortina verdades e valores pelos quais havia passado batido.

Vladimir Nabokov, também russo e romancista, autor do romance “Lolita”, assim se referiu ao livro de Leon Tosltoi, que ele considerou uma das obras máximas da literatura russa: “A formulação tolstoiana é: Ivan viveu uma vida má, e como a vida má é simplesmente a morte da alma, então Ivan viveu a morte em vida”. Lucas Lima escreveu: “Que livro forte! (...) Russo não tem o menor jeitinho na hora de falar as coisas na lata. Texto muito direto, sólido, sem firula nem carinho. Verdade sem desvios. Baita reflexão sobre a vida, sobre escolhas e os porquês destas”.

Duas leituras concisas e pertinentes. De fato, ao explorar a jornada de Ivan Ilitch durante sua doença e a confrontação com a morte iminente, Tolstói oferece ao leitor oportunidade para refletir sobre inquietações eternas, uma delas a finitude da vida. As outras são a superficialidade mundana, a alienação da sociedade, a generalizada falta de empatia, o descaso das pessoas em relação ao sofrimento alheio. Mas também a importância do amor e da compaixão como valores fundamentais; e a necessidade de uma conexão humana verdadeira- consigo e com o outro.

É muito bom quando artistas, especialmente os de forte apelo popular, trazem a público uma obra expressiva como esta de Tolstoi, porque a influência deles pode ampliar o número de leitores, o que representa crescimento para o indivíduo e (re) valorização para a literatura. Seria leviano afirmar que a recente leitura que Lucas fez de Tolstoi influenciou diretamente alguma tomada de decisão em relação ao seu descasamento. Mas parece que abalou algumas de suas certezas. 

Quanto à Sandy, se eu fosse próxima dela lhe aconselharia a leitura de outra obra de Tolstoi, “A Felicidade Conjugal”. Escrita sete anos antes de “A Morte de Ivan Ilitch”, a voz feminina da protagonista, Mária, revela frustração diante do desgaste do casamento com Serguei, e analisa as diferentes facetas do amor que se transforma ao longo do tempo. Se de início Mária, amando Serguei e sendo amada por ele, estivera apaixonada, aos poucos o entusiasmo se esvaíra cedendo lugar à acomodação. Desiludida, frustrada, entediada, Mária se questiona sobre o amor “afogueado” que a unira a Serguei. Como Tolstoi ainda não era casado com Sofia, com quem viveu décadas, e nos últimos anos aos trancos e barrancos, e principalmente porque era muito jovem, deixa uma brecha otimista para a possibilidade de um sentimento mais sereno e amadurecido. A condição para alcançá-lo seria o investimento constante no diálogo para resolver as pendências e disponibilidade para a aceitação do outro. O fato de colocar Mária, no final do enredo, tocando ao piano a mesma música com que aparece pela primeira vez na narrativa (Sonata ao Luar, de Beethoven), soa como tentativa de levar o leitor a pensar em algo que se repete mas de forma mais afinada, depois de muito exercício, onde acerto e erro redirecionam a trajetória. A felicidade conjugal é uma construção, eis a mensagem do conto. Outra leitura possível passa pelo crivo psicanalítico e seria a abordagem do desejo que se esgota mal é satisfeito.

Enfim, grandes escritores seguem eternos porque sabem que os dramas pessoais são sempre os mesmos em sua essência. Só muda o endereço.

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