NOSSAS LETRAS

Poesia verdadeira

Todas as tentativas de colocar a poesia dentro de um molde fracassaram, mas da soma de várias observações podemos extrair algum sumo. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 23/09/2023 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN/Sampi Franca

“A poesia é a forma suprema de atividade criadora da palavra, devida a intuições profundas e dando acesso a um mundo de excepcional eficácia expressiva. Por isso a atividade poética é revestida de um caráter superior dentro da literatura, e a poesia é como a pedra de toque para avaliarmos a importância e a capacidade criadora desta. Sobretudo levando em conta que a poesia foi até os tempos modernos a atividade criadora por excelência, pois todos os gêneros nobres eram cultivados em verso. Hoje, o desenvolvimento do romance e do teatro em prosa mudou este estado de coisas, mas mostra por isto mesmo como toda a literatura saiu da nebulosa criadora da poesia”.

Gosto dessas considerações abrangentes e metafóricas de Antônio Cândido em relação a um gênero literário difícil de conceituar, mesmo entre poetas: “A poesia sempre me pareceu um mistério, você não sabe dizer o que é, ela acontece ou não”, respondeu Hilda Hilst a um entrevistador. Todas as tentativas de colocar a poesia dentro de um molde fracassaram, mas da soma de várias observações podemos extrair algum sumo. Vejamos.

Para o mexicano Octávio Paz, ela é “uma erotização da linguagem”; para o russo Maiakovski; “uma viagem ao desconhecido”. Adolfo Casais Monteiro, poeta português, a viu como “um voo sem pássaro dentro”, empatando com o brasileiro Manoel de Barros que a considerou “um voar fora da asa”. Enquanto o inglês Jonas Swift (que escreveu “As viagens de Gulliver”) a identificou como “irmã mais velha de todas as artes e mãe da maioria delas”, o nosso Guimarães Rosa a perfilou como “uma irmã da magia.” Também há similaridade entre o pensamento do italiano Salvatore Quasímodo e o do espanhol Damaso Alonso, quanto a percepções e intuições que permeiam autor e leitor. Diz o primeiro que “a poesia é a revelação de um sentimento que o poeta acredita ser interior e pessoal, mas que o leitor reconhece como próprio”; e o segundo que “ela é um nexo entre dois mistérios- o do poeta e o do leitor”. Talvez o francês Mallarmé tenha sido mais conciso e certeiro ao escrever que “ela se faz com palavras e não com ideias”. Sim, como sugeriu Carlos Drummond de Andrade, é no reino das palavras que a poesia dormita à espera de um chamado. 

Todas essas tentativas de definição passaram novamente por minha mente e coração desde o penúltimo fim de semana, mobilizando ambos com a poesia genuína de autoras abençoadas com o dom de descobrir coisas ainda não vistas e verbalizá-las com linguagem comum elevada à enésima potência.

Na sexta-feira tivemos na Academia Francana de Letras mais uma reunião rotineira que se tornou singular porque em torno do livro de poemas da acadêmica Tânia Mara Pinto de Souza, “Não escrevo poesia, ela me (d)escreve”.  A lida de Tânia com as palavras traduz um delicado e perspicaz olhar feminino sobre o mundo que a cerca e no qual ela se envolve com seus afetos, algumas vezes de um modo que faz lembrar Adélia Prado, como se pode ler em “Almoço de domingo”, “Amarelinha e o tempo”, “Lua cheia”- três belos poemas no livro de 112 páginas que tem prefácio de Jair Marcatti e  orelha de Alex Wiechmann.

No sábado, reencontrei Adélia Prado no quarto evento do ano do Poepsi (Polo de Estudos Psicanalíticos de Franca), que recebeu título simbólico neste 2023: “Da poesia do tempo ao tempo da poesia”. Coube a Ana Regina Morandini Caldeira selecionar e comentar com sensibilidade e conhecimento poemas da escritora mineira que fizeram o público presente alçar voos para regiões marcadas por amor, maternidade, sexualidade, lirismo, sobretudo identidade feminina- temas frequentes da que é considerada a maior poeta brasileira viva. 

Em seguida foi a vez de Sônia Godoy apresentar Cecília Meirelles, poeta plural que desvela em seus versos várias maneiras de existir, um pouco à maneira de Fernando Pessoa, cujo valor ela foi das primeiras a reconhecer. E exemplificando o que disseram Quasímodo e Alonso, Sônia contou que ao ler os poemas escolhidos para o evento, sentiu-se “tão próxima dela (Cecília), aos poucos, conforme fazia as leituras de seus poemas, como se fosse adentrando em um mundo de sentimentos contidos, prazeres verdadeiramente usufruídos, em que percebia reflexões sobre a vida, sobre nossas possibilidades e impossibilidades enquanto humanos (...)”

Para fechar a manhã, a anfitriã do encontro, Josiane Barbosa Oliveira, trouxe-nos Conceição Evaristo, uma das grandes vozes da literatura brasileira contemporânea. Sua obra, entrevista nos poemas analisados, denuncia a exclusão do negro desde a escravidão aos nossos dias, o racismo, a violência, o preconceito, mas ao mesmo tempo expressa a dignidade do povo negro na sua luta para se libertar da opressão de séculos. A poesia cumpre assim uma de suas funções mais preciosas: ao colocar palavras no lugar da dor, Conceição Evaristo transfigura o sofrimento em beleza e dessa maneira fez todo mundo chorar junto com Josiane.

E na última sexta a poeta Cirlene de Pádua, que mora em Franca há décadas mas não rejeita sua forte identidade mineira, lançou mais um livro de poemas e prosa poética. Ilustrado com desenhos do marido, Valdir Ribeiro de Morais, “Pingos de proesia e entretelas” revela, como escreveu na capa Conceição Lima, membro da Academia Feminina Sul-Mineira de Letras e da Academia Ribeirãopretana de Letras, “um casal unido na arte e na vida, produzindo um incrível mix de beleza e ternura(...) para reinventar a vida, como nos ensina Cecília Meirelles”.     

Estar em contato com poesia de verdade, aquela que toca o coração e mobiliza a alma, é oportunidade de vivenciar nossas dimensões mais intensas, nossas densidades trágicas, que não raro podem ficar muito tempo debaixo de uma camada de gelo, por razões de hábito, acomodação ou medo de sofrer. Por isso, em carta a um amigo com quem falava sobre literatura, Kafka escreveu: “Um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós”.

Os livros de Adélia Prado, Cecília Meirelles, Conceição Evaristo e muitos outros de nossa literatura que vem se enriquecendo com vozes femininas como Tania Mara e Cirlene de Pádua, são “quebradores de gelo”, no sentido que também lhes conferiu o historiador Leandro Karnal em crônica publicada recentemente no jornal O Estado de São Paulo: “eles não nos consolam, não exaltam os dias melhores que virão, muito menos afirmam que somos bons e o sol nascerá de novo com vigor. São todos quebradores de gelo.” Eu concordo.

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