NOSSAS LETRAS

A beleza no meio da feiura

Acompanhei o noticiário com sentimento de tristeza diante de rostos enlutados, fisionomias devastadas, crianças perdidas e idosos impactados. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 16/09/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN/Sampi

Pixabay

O terremoto ocorrido no Marrocos na semana passada dominou o noticiário internacional por três razões: o alto grau de magnitude, a extensão dos danos materiais; o número de mortos e feridos numa região raramente atingida por este tipo de desastre. Quase instantaneamente uma comoção tomou conta do mundo diante das cenas de destruição e morte. A rotina se quebrou frente ao que parecia inusitado. 

Na verdade, a sensação de estranhamento advém do fato de que esquecemos, ou não gostamos de lembrar, de que todos os dias cerca de duzentos terremotos são registrados no planeta, segundo marcadores espalhados por toda crosta terrestre e oceanos. Os equipamentos são capazes de detectar as mínimas vibrações nas entranhas da Terra. Como em sua maioria os tremores só ocorrem em regiões desabitadas, só são conhecidos por encarregados de monitorar diuturnamente as pressões internas de nosso planeta. São essas que provocam o movimento das placas tectônicas, depois de encontrarem falhas geológicas no seu caminho em busca de dissipação. Tudo acontece quilômetros abaixo dos pés humanos e das estruturas dos edifícios, lá onde as bordas de um bloco rochoso se chocam com as de outro.

Quase ao mesmo tempo em que o terremoto causava destruição no noroeste do continente africano, no sul de nosso país um ciclone varria do mapa pontes, estradas, casas, pequeninos povoados cujo valor histórico tinha recebido o reconhecimento de instituições oficiais. Dezenas de mortos e feridos, centenas de prédios destruídos, milhares de desabrigados foram o saldo desta outra catástrofe, que não veio de dentro, e sim de fora; e teve aviso prévio não levado tão a sério como deveria. É que até então nada parecido havia sido registrado pelas populações ribeirinhas daquela região.  As águas subiram de forma tão abrupta quanto apavorante, tocadas por ventos que levaram num roldão furioso tudo o que encontraram pelo caminho.

Horas depois do terremoto no Marrocos e do ciclone no sul do Brasil, uma supertempestade no litoral mediterrâneo da Líbia matou mais de dez mil pessoas, extinguiu povoados centenários, desmanchou o principal porto do país fragmentado há mais de uma década por razões políticas. Desgraça pouca é bobagem.

A força descomunal do ciclone e da tempestade tem sido atribuída ao El Niño, mas muitos a avaliam mais como um dos episódios que vêm marcando a mudança de clima no planeta. Faz tempo que nós, humanos, andamos cuidando mal de nossa morada no universo. Há um preço a pagar. Cientistas alertam para a frequência dos desastres, que estão se tornando cada vez mais avassaladores.

Acompanhei o noticiário com sentimento de tristeza diante de rostos enlutados, fisionomias devastadas, crianças perdidas e idosos impactados em meio a escombros. E fui me dando conta da coragem que precisa ter alguém que se encontra assim, dentro do olho de um furacão. Nenhuma experiência pode ser integralmente transferida, mas acho que mesmo a salvo dessa intempérie e a quilômetros de distância podemos avaliar um pouco do que sente uma pessoa que perde tudo, mas tem consciência de que manteve a vida, o bem mais precioso. Talvez saia fortalecida desta situação extrema porque testada no limite.

E por aí fiquei me interrogando a respeito da relativa fragilidade humana e ao mesmo tempo sobre mistério que cerca cada existência. Pois como compreender que uma marroquina tenha mantido a sanidade mental depois de perder o marido e quatro filhos no desabamento de sua casa? Ou que uma gaúcha de noventa e nove anos, expulsa pelas águas que invadiram o quarto onde se encontrava ao lado de sua cuidadora, tenha conseguido sobreviver agarrada às estacas de uma parreira durante nove horas?

Do que consegui ver nesse mar de tristeza, nesse horror de escombros, tirei algumas conclusões. Uma delas foi sobre os lados bonitos de muitos humanos. No Marrocos, jovens ajudaram bombeiros na retirada de corpos e de feridos em soterramentos; também armaram rapidamente barracas com água, biscoitos e frutas nas áreas afetadas. Aqui no Brasil, homens e mulheres de localidades não atingidas se organizaram em pouco tempo para ajudar os desabrigados. Uns levaram água potável, comida e produtos de higiene. Outros se ofereceram para mutirão de limpeza aos que ainda tinham casa. Roupas chegaram de toda parte. Apareceram professoras abençoadas com seu jeito de entreter meninas e meninos apavorados. Até na miserável Líbia gestos de consideração parecidos foram flagrados por câmeras.

Ali estava a solidariedade do povo, mais intensa que os terremotos, mais ampla que os ciclones, mais efetiva que os governos:  uma energia que une, um afeto que alimenta, uma esperança que restaura. Tais cenas vistas e relatos ouvidos quase em tempo real me levaram a Guimarães Rosa, quando escreve em um de seus contos que se a gente olhar bem, verá que em todo lugar “existe sempre algum milagrezinho acontecendo”. Pode ser a beleza no meio de feiura, algum traço de ordem em todo caos, fé na vida que se impõe e segue.

De resto, acessando na memória a etimologia grega de catástrofe, calamidade e ciclone, rogo a Zeus, Éolo e Poseidon que protejam a nós, seres do Antropoceno, era marcada pelo progresso tecnológico acelerado desde a Primeira Revolução Industrial; crescimento explosivo da população; multiplicação da produção e do consumo; obtusa desconsideração pela natureza.

Salvem a Terra, ó deuses!

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