NOSSAS LETRAS

Devaneio de Samambaia

Caríssimos girassóis, permitam meus devaneios e perdoem minhas faltas. Leia o artigo de Baltazar Gonçalves.

Por Baltazar Gonçalves | 09/09/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN/Sampi

Caríssimos girassóis, permitam meus devaneios e perdoem minhas faltas. Sei da minha dívida para com o realismo das letras, é que o absurdo ganha vísceras de formas concretas demais para um poeta que só queria um copo d’água sem discurso. A cada dia que invento estou mais pobre de vocabulário que dê conta dos nós contra, e me perco sem exatidão quando penso a responsabilidade inútil de decifrar modelo que sirva para compartilharmos o redemoinho da História em movimento. Minha fuga óbvia é a Poesia, Ela que me julgue porque nossa vida passa rápido, mas não aos dezesseis.

Aos dezesseis a eternidade dura mais, nessa altura da potência o retrovisor é dispensável. Olhar para traz é coisa de velho, todas as verdades cabem num único clichê: quem gosta de passado é museu. Se troca de roupa ou pele fecha os olhos para não reconhecer no espelho o avô do avô. A corrida é frenética e o podium é atingível, na chegada da vitória eminente haverá fogos de artifício, banda e fanfarra. Não se sabe para onde vai e nem importa já que todos dizem vem por aqui. O mundo ainda será pequeno aos vinte, mas não aos vinte e cinco.

Aos vinte e cinco, um milhão de amigos é pouco e continua sozinho, mas tá tudo certo porque já aprendeu no Instagram que responsabilidade afetiva é um tipo de tóxico da novíssima modernidade corrosiva, sobriedade é palavrão, na balada bala beija baba e bebe mais porque mesmo condutor “de maior” segue eufórico dono da estrada, mas não aos trinta. 

Aos trinta, a ressaca moral cobra no dia seguinte “eu te falei”. Mas ainda acha tempo de fazer acontecer os sonhos dos outros para negar os seus. Tanta disposição e vigor na reserva de ainda poder mudar o mundo. Reserva é uma palavra que guarda inconsciência do que se fará sem saber se deseja ou não. Acredita em testamento antigo inválido e heranças sem raízes, vai ganhar na loteria mas não joga, mesmo possível transformar a realidade que não aceita segue sem conhecer a si mesmo, mas não aos quarenta.

Aos quarenta a vida começará depois, mas parece tarde. No meio do caminho uma curva longa faz olhar no retrovisor esquecido. Aquele museu cresce em novidades. A narrativa da aventura no meio exato da obra é livro não publicado e o agora é grande ASSIM, de Homero à Ulisses Guimarães. A eletricidade de poder ainda consome, é como se fosse possível compreender o represado antes, o sonhado em seu lugar, o inevitável diluído, represa erguida em torno da vontade legítima para negá-la, quase dá para tocar a pressão das águas subirem até a ruptura inequívoca dos limites do inaceitável, ainda haverá tempo para o resgate do comprometido, do corrompido inadmissível, e compreender-se no amálgama das ilusões perdidas, mas não aos cinquenta.

Aos cinquenta, os reconstrutores megalomaníacos das falhas do caráter alheio são hábeis em receitar fórmulas sistêmicas, nada que funcione até a página dois do manual, evidências apontando o contrário: a eternidade está como sempre esteve, bocarra desdentada da engrenagem aberta, e ali está o eterno retorno ao primeiro comportamento fundamental rejeitado.  Sina de Sísifo: dá-se um passo e a percepção do que seja fundamental muda. As certezas filtradas garantem ao peixe pequeno ser parte do cardume, mas ainda relutante em ser comida de tubarão, mas não as samambaias.

As samambaias no vaso estão sem vontade e sabem que ninguém vai a lugar algum, são verdes mudas e balançam ao vento se a mão livre abre janelas. Porque os fundamentos estão em pouca terra no vaso, falta abrigo no parto das engrenagens. Muitas águas passaram durante sempre, e todo esse líquido amniótico na placenta universal envolve cada girassol no mesmo albergue do devir ancestral.

Quantas paredes erguemos sobre estruturas deformadas, o tempo já passa das onze e o relógio da existência acusa os minutos que faltam para o sucesso desfeito. Quando a maturidade se firma mesmo trêmula, fazer imaginar constrói pontes para navios e mares, como se o sonhar ainda fosse a sobra da potência e a vontade de poder. Nesse pêndulo-gangorra, o ritmo interno é mais lento e o suceder da empreitada que resta acalanta toda nossa impotência, pois basta um poema que nos alenta para que o nosso seguir em frente chegue os oitenta.

Pois, saber que nos terreiros de toda gira a mão do invisível sem nome desenha novos caminhos traduz a canção da vida, feito sonho que se pusesse sobre um navio, feito uma conversa com Cecília onde pus o meu sonho num navio / e o navio em cima do mar / depois, abri o mar com as mãos / para o meu sonho naufragar. / Minhas mãos ainda estão molhadas / do azul das ondas entreabertas / e a cor que escorre de meus dedos / colore as areias desertas. / O vento vem vindo de longe, / a noite se curva de frio; / debaixo da água vai morrendo / meu sonho, dentro de um navio. / Chorarei quanto for preciso, / para fazer com que o mar cresça, / e o meu navio chegue ao fundo / e o meu sonho desapareça. / Depois, tudo estará perfeito / praia lisa, águas ordenadas, / meus olhos secos como pedras / e as minhas duas mãos quebradas.

Baltazar Gonçalves é historiador e escritor membro da Academia Francana de Letras

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