NOSSAS LETRAS

Levantar-para-ver

Nada tinha lido sobre o conceito “mitate”. Descobri só recentemente que o verbete pertence ao léxico nipônico e à ordem da estética. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 09/09/2023 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN/Sampi

Nada tinha lido sobre o conceito “mitate”. Nunca ouvira falar dele. Descobri só recentemente que o verbete pertence ao léxico nipônico e à ordem da estética. Traduz a percepção de um objeto de forma não habitual, leva à contemplação dele como se fosse outra coisa para poder renovar seu significado e, consequentemente, a experiência do sujeito.

Se buscarmos no campo da linguagem, vamos encontrar o sentido de “levantar-e-ver”. Ou, em bom português, desvelar. É figura de linguagem que no Ocidente tem equivalentes na metáfora, metonímia, paródia. Aparece em antigas coletâneas imperiais de poesia. Vai além das palavras e surge em alus?es visuais: as pedras do jardim zen de um templo em Kyoto, são “mitate” de outros templos. Neste início de milênio chegou à fotografia, onde um feixe de brócolis desmembrado em buquês, de acordo com a escala e o ponto de vista do observador, pode se transformar no “mitate” de uma floresta. Enfim, mesclando o real e o imaginário, o artista retira objetos do lugar usual e os rearranja pela via de seus devaneios e fantasias.

O “mitate” está enraizado na cultura japonesa, que desde sempre conviveu em harmonia com a natureza para compensar com a imaginação coisas faltantes. Esse senso estético é encontrado na literatura, na cerimônia do chá, na jardinagem, no entretenimento, na gastronomia e, já neste nosso século, chamou a atenção do fotógrafo Tatsuya Tanaka, 40 anos. Especializado em miniaturas e criador do projeto minimalista ‘Miniature Calendar’, ele ressignifica objetos do cotidiano, propondo cenas e imagens que às vezes são tão minúsculas que exigem lupa para serem vistas. Diariamente se comunica com seus mais de três milhões de seguidores na internet e suas exposições circulam pelo mundo.

Os temas mais comuns na sua obra são a floração das cerejeiras, o Monte Fuji, festas populares, florestas, canteiros, conchas, frutos do mar, canudos, pregadores de roupas, pegadores de massa, leques, sushis, ovos, tigelas.

Não passa despercebida, por recorrente, a presença de um vegetal, o brócoli, item importante da culinária do país.  “O brócoli é o material que me inspirou a olhar os objetos e a pensar em outras possibilidades com eles. Quando digo que se parecem árvores, pessoas em todo o mundo podem se relacionar com essa ideia”.  Assim Tanaka se expressa no texto que abre sua exposição “Japão em miniaturas”, na Japan House, em São Paulo. A entrada é gratuita, o valor artístico não tem preço, o acesso ao prédio é fácil e a fruição emocional algo que nos tira por momentos da dura realidade.

Ao todo são 37 obras divididas em cinco grupos principais: estações do ano e seus eventos, cenas do Japão tradicional, cenas do Japão moderno, vida cotidiana e práticas tradicionais. Quanto aos materiais utilizados, surpreende reconhecer cerdas de escovas de dente que se tornam plantações de arroz; embalagens de leite que lembram a arquitetura de um castelo japonês; sushis enfileirados em esteiras de brinquedo que remetem a trens e carros em trânsito. Etc.

Para a primeira exposição na América Latina, foi criada uma maquete especialmente para a mostra brasileira, a partir de conversas entre o artista e a curadora Natasha Barzaggi Geenen. O arroz e o feijão se tornaram protagonistas: "Ao ouvir sobre a feijoada, prato que se come com arroz, assim como o karê no Japão, comecei a pensar na possibilidade de expressar a areia branca e o mar utilizando esse prato típico. Também soube que no Rio de Janeiro, à beira da praia, há calçadas com padrões de ondas feitas de pedras pretas e brancas. É isso que imagino quando penso no Brasil. O feijão preto e o arroz são alimentos familiares aos japoneses também, e penso que, apesar de estarem de lados opostos do mundo, Brasil e Japão possuem culturas com aspectos semelhantes”, escreveu o fotógrafo. Tive o privilégio de ver a exposição em julho. Encantaram-me todas as peças, mas “A Floresta de Bambus” me tocou em intensidade pela forma, singeleza, título e legenda.

“O bambu é uma planta muito comum e apreciada no Japão. Lá crescem cerca de 250 espécies diferentes e existem grandes áreas com essas plantas. Os bambus são utilizados para variados fins na cultura japonesa, como na alimentação, consumido como broto, passando pela construção civil e do mobiliário, e até como item de decoração em festivais e rituais cerimoniais. Por estar sempre verde, mesmo no inverno, e ser tão flexível quanto resistente, o bambu passou a ser considerado planta sagrada, símbolo da prosperidade e boa sorte. Nesta obra, a simbologia está expressa em seu título: “Vamos crescer eretos, sem nos curvar”. Como o bambu cresce verticalmente, Tatisuya Tanaka o representou com canudos(...) para expressar o desejo de que as pessoas vivam de forma honesta, sem se deixarem levar ou sem desistirem de seus objetivos. Além disso, a mulher, nessa miniatura, está olhando para a frente, mesmo que sua visão possa ser obstruída na floresta, demonstrando a atitude de seguir firme, mesmo que obstáculos surjam.”

Saí da exposição pensando no sentido transbordante do mitate e no caráter contido do minimalismo. Concluí que apenas na superfície os dois conceitos parecem contraditórios, pois em sua essência pretendem alcançar o simples que, na verdade, é de uma riqueza imensa.

 Quando a gente vai envelhecendo, costuma conferir mais valor a tudo aquilo que nas fases anteriores da vida não compreendeu bem por não levantar- para-ver, por não ter sido capaz de desvelar. Especialmente quando somos frutos de uma cultura consumista, na maior parte da vida fica difícil entender que menos é mais. Mas é.

Serviço:

  • Exposição ‘Japão em Miniaturas - Tatsuya Tanaka’
  • Período: até 08 de outubro de 2023
  • Custo: entrada gratuita
  • A exposição conta com audiodescrição, libras e bancada com elementos táteis como recursos de acessibilidade.
  • Japan House São Paulo | Térreo
  • Endereço: Avenida Paulista, 52 – Bela Vista, São Paulo
  • Horário de funcionamento: 
  • Terça a sexta-feira, das 10h às 18h
  • Sábados, das 9h às 19h
  • Domingos e feriados, das 9h às 18h
  • Evite filas e programe seu passeio (agendamento opcional): https://agendamento.japanhousesp.com.br

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