NOSSAS LETRAS

Coisas bonitas

Gostei tanto da live de Vanessa Maranha com Maria Valéria Rezende no Instagram que fui ver de novo a entrevista do último sábado, 26. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 02/09/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Reprodução de ilustração do livro 'Minha valente avó'/Crédito: Marilia Pirillo

Gostei tanto da live de Vanessa Maranha com Maria Valéria Rezende no Instagram que fui ver de novo a entrevista do último sábado, 26, já que tinha sido gravada. Fiquei grudada na tela, sorvendo a sabedoria de uma mulher que aos oitenta anos mantém energia que às vezes não é encontrada em jovens de vinte. Sua biografia dá conta de seu dinamismo.

Nascida em Santos, viveu nesta cidade até os 18 anos. Em 1965 entrou para a Congregação das Cônegas de Santo Agostinho, dedicando-se à educação dos pobres, primeiro na periferia de São Paulo e, a partir de 1972, no Nordeste. Morou em áreas rurais de Pernambuco e Paraíba. Em 1986 mudou-se para João Pessoa. E foi de lá que falou com a escritora francana e para os que assistiam ao encontro fértil.

Autora de trinta títulos que compreendem contos, romances e poemas, nela o gosto pelas letras se manifestou cedo, talvez por ser membro de família onde livros faziam parte do cotidiano. Mesmo depois da crise de 1929, quando o padrão de vida foi rebaixado, a biblioteca familiar não se fragmentou. Um dia Maria Valéria encontrou a avó Georgina olhando a montanha de volumes acomodados no longo corredor da casa pequena para onde tivera de se mudar. Como ela parecia procurar alguma coisa, perguntou-lhe se poderia ajudar. Foi quando a ouviu responder, olhando sempre para os livros: “E ainda dizem que a gente perdeu tudo...”

Esse fato e essa frase relembrados pela entrevistada formaram um dos vários momentos bonitos da live, a mostrar que ninguém perde o que é verdadeiramente seu. Por outro lado, apresentou ao espectador a avó que reconheceria cedo o talento literário da menina que lhe destinava cartas criativas, nas quais se colocava mais como observadora do mundo que via passar sob sua janela do que como remetente de notícias familiares.

Georgina sugeria à neta que reunisse em livro seus escritos. Mas muitas décadas transcorreram até que Maria Valéria Rezende, que já havia andado meio mundo alfabetizando crianças e jovens, se autorizou a publicar. Seu primeiro livro, Vasto Mundo, é conjunto de contos que colocam em cena o povo nordestino, recortando a geografia local, apontando dificuldades e crenças. O romance O voo da guará vermelha traz a experiência da autora diante do desafio do analfabetismo, ao mostrar personagem desejosa de aprender a ler e outra conscientizada do valor de ensinar. De forma geral, na ficção da autora as relações sociais são afetadas por medo, dor e insegurança, mas há também lealdade, amor e fé na vida. 

Ficcionista com trinta títulos publicados, contemplada com expressivos prêmios, entre eles o Jabuti; e ainda com incursões poéticas pelo lirismo dos haicais, o repertório verbal entrevisto na live foi uma fresta para que o espectador vislumbrasse a riqueza de seus escritos. Maria Valéria é daquelas pessoas que gostam de conversar, não perdem o fio da meada, agregam a todo momento dados novos do dia anterior ou antigos, retirados da gaveta da sua memória prodigiosa.

Dado o caráter da live, a convidada focou no tema aconselhando leitura para quem deseja escrever literariamente. Ler muito, autores diversos, pois é assim que se começa a aprender, conhecendo os recursos que individualizam cada autor. Parece óbvio; dados os índices de leitura em nosso país, não é. 

Contou um pouco de seu processo, como estar aberta ao mundo, recolhendo, por exemplo, frases e pedaços de conversas de pessoas que talvez nunca mais verá e são verdadeiras disparadoras de histórias que ficam gestando na mente, até que um dia brotam na escrita. E se todo escritor diz que as histórias já moram dentro de si antes de serem contadas, é necessário saber qual delas deseja de fato contar a cada vez.

Nessa toada harmoniosa revelou que começa suas narrativas a partir dos personagens e só depois de estarem eles bem definidos constrói o enredo que vai construindo numa técnica que lembra um crochetar de partes. Fez comentário interessante sobre os circuitos neurais diferentes acionados pela escrita manual e a escrita digital e confessou suas dificuldades, agravadas ultimamente por problemas de visão. O que não a impede de escrever ou ler, pois no momento está se adaptando a um leitor virtual criado especialmente para ela por seus jovens amigos escritores.

Durante bem mais dos sessenta minutos previstos a prosa da escritora santista com a escritora francana correu sobre carreteis. Maria Valéria Rezende lembrou autoras ilustres com quem conviveu: Pagu, a homenageada da Flip deste ano e sobre quem escreveu livro a ser lançado em breve; Hilda Hilst, polêmica na época e ainda hoje; Lígia Fagundes Telles, de quem obteve um “beneplácito” para publicar seu primeiro livro aos 59 anos.

Humanista e progressista, como a definiu Vanessa Maranha, enfrentou dissabores e impedimentos nos anos de ditadura militar (1964-1985) e frustrações no período de retrocesso vivido recentemente, quando projetos culturais de importância para o país foram sumariamente desfeitos.

Mas Maria Valéria Rezende é otimista, acredita que “há coisas muito bonitas acontecendo de novo no Brasil.”  Concordo: a live na qual foi protagonista, dentro do projeto Escrita Criativa, contemplado com o Bolsa Cultura da FEAC/ Prefeitura Municipal de Franca, foi uma delas. Mais que bonita, inesquecível por suas palavras generosas, posicionamentos lúcidos, esperança na vida e na literatura. Pessoas como ela pertencem àquele grupo das que são imprescindíveis.

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