NOSSAS LETRAS

Conhecimento e Verdade

Por Baltazar Gonçalves | Especial para o GCN
| Tempo de leitura: 4 min

Esses dias presenciei alguém usando Deus, ou a ideia que fazemos de deus e o poder que conferimos a ela, poder ancestral anterior a Moisés e às savanas perdidas no tempo dos primatas da nossa origem, para manipular a vida de outras pessoas e fazer-lhes mal. Se formos criteriosos na pesquisa veremos por toda parte na História da humanidade, é catálogo de atrocidades cometidas em nome da justiça divina segundo as conveniências e circunstâncias de cada época.

Não use o nome de Deus em vão é regra no decálogo, se você quer ficar do lado dos vencedores vai dizer que está do lado da vontade do Poder Eterno, e aponta o dedo: perde quem não creu. Dizemos que Deus é bom e justo enquanto nossa vontade egoísta é satisfeita, quando as coisas saem do controle dizemos que não é justo, que é provação ou um tipo de teste doentio, como se tudo fosse um jogo perverso de poderes supremos e marionetes. Bem perto de você terá quem justifique a própria insegurança e age de forma a controlar os processos para obter resultados pessoais. Porque me senti cutucado com vara curta onde muitas feridas antigas custam cicatrizar, resolvi falar do assunto com Jesus.

Para falar com Jesus, há os que vão para Santiago de Compostela na Espanha que é um rolê caro, os que vão à Aparecida aqui mesmo no Estado de São Paulo. Eu perambulei nas ruas de Franca escolas semáforos mercados esquinas biqueiras igrejas universidades shopping – teatros - fui até à prefeitura.  É onde o mais sofrido não encontra abrigo que encontrei Jesus fazendo uma palestra ou podcast não sei bem por que tinha muita gente do lado dele, depois pensei que era um sarau ou roda de conversa, tinha resenha, cheguei perto o suficiente para ouvir Jesus declamando um poema de protesto contra a romanização dos nossos dias, o poema já ia pelo meio quando o ouvi dizer “e quando conheceres a verdade, a verdade vos libertará, desde que...”.

Que verso veio depois nessa frase musical do poema do nazareno, francamente, foi tão baixinho que o cronista presente teve de improvisar, porque o dito não pode ficar solto assim, despregado do discurso como avatar longe da cruz, um verso que prometia tanto, é colando o ouvido que se enxerga melhor o movimento dos lábios que ajuda na dedução da sequência lógica das ideias flutuando no ar, desde que...

Jesus diz muita coisa e nunca escreveu nada, não publica livros nem participa de concursos ou academias de letras, mas todos reconhecem sua eloquência. Mesmo pobre, ele sabe muito. Não é sabichão, é daqueles pensadores que sabem a hora de sair de cena, Jesus sabe que o maior risco de crucificação é tornar-se celebridade, desde que...

Ver e reparar palavras e coisas soltas, tudo que existe é mediado pela linguagem e entra pelos poros olhos boca e nariz, projeções de futuros e costumes antepassados, também outras peças do grande quebra-cabeças que a gente nunca dá conta de reunir numa vida, ainda bem que existem os livros e os memes e neles a voz dos cronistas, sabe-se lá o que podem inventar de registrar nos cartórios, logo farão Jesus aparecer em glória nas mídias dublado até em esperanto para concluir o que ficara a dizer no ar, desde que...

Tudo que te ensina existe solto por aí, nada aprisiona a verdade para sempre. O conhecimento é dado livremente e rola sobre as pedras desde os primórdios, tudo até a ausência, aliás é notável que a falta ensina mais que a abundância. Jesus está repete sussurrando a parte do verso que faltava, os fariseus hipócritas contemporâneos já pensam em “cancelamento por heresia”, ai de quem mudar o que foi dito no escrito, quem ouviu que o diga, limpem a terra para a renovação da espécie amém, mas agora que chegamos pertinho na primeira fila, ouvimos de Jesus o que se traduz: o conhecimento nos liberta iluminando mentiras.

Um simbólico editado e corrigido por tantas mãos que a História relega à Literatura sua autenticidade formal, o texto torna-se claro penhorado no estilo do cronista cuja voz assina: aos excluídos, a palavra sacralizada não garante segurança, saúde ou propriedade aos que vivem das migalhas que caem das mesas da classe dominante branco-heteronormativa judaico-cristã. 

O conhecimento liberta, a liberdade que se pode conhecer está no revelado mal-estar do mundo. De fato, na frase “conhecereis a verdade que vos libertará”, o verbo conhecer vem antes do substantivo verdade, pois que não é a verdade que nos liberta, dado que chegando perto a suposta verdade logo muda, feito vagalume que pisca noutro lugar tão logo seja visto brilhando, mas é o conhecimento que se mostra preciosa ferramenta para se desmascarar mentiras. Quem não repara não sofre o prazer de desvendar os jogos de palavras, essas de mãos dadas em frases postas para talvez retrucar a pessoa que esta semana fez o papel feio de usar o nome Deus para justificar a própria insegurança e controlar o medo dos outros dando-lhes perspectiva limitada de esperança para, no fim das contas, apenas obter o próprio favorecimento.

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