NOSSAS LETRAS

Abraço, interrompido

Poucas vezes nos damos conta da delícia que é sentar-se à sombra de uma árvore: não existe ar condicionado que iguale. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 26/08/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Minha vizinha Lígia Freitas, que também ama a literatura e é escritora, há poucos dias, quando eu cuidava do jardim, parou para um dedo de prosa, vinda do playground do nosso condomínio, onde havia deixado os filhos, dois meninos ainda bem pequenos. Convidei-a a sentar-se no banco de madeira que por ficar debaixo de uma primavera oferece sempre o prazer da sombra fresca. Continuamos a conversar.

Poucas vezes nos damos conta da delícia que é sentar-se à sombra de uma árvore: não existe ar condicionado que iguale. E conversar ao ar livre, inspirando oxigênio puro, que prazer é isso; acho que foi uma das razões pelas quais a escola peripatética rendeu tantos frutos nas aulas do grego Aristóteles.

Sentadas debaixo da buganvília, conversávamos sobre coisas simples, flores, crianças, perfume, linguagem, livros, textos, esses pequenos prazeres, como os chamaria Proust, mas também sobre notícias que estão perturbando o homem do Antropoceno. Esta Era, dizem cientistas mais antenados, começou há setenta anos e vem sendo marcada agora pelos incêndios que expulsam habitantes de suas cidades, ciclones que desmancham casas em poucos minutos, chuvas torrenciais que encharcam o solo, abrem fendas e engolem o que encontram. Falávamos disso, e também da falta de água em alguns lugares do planeta judiado, e suas populações que passam fome porque não conseguem plantar, colher, alimentar-se com o mínimo.

E do mínimo, não por acaso, pulamos para Mário Quintana, e os olhares desse poeta brasileiro para as (des) importâncias da vida.  Ela, jovem, citou o Poema do Contra; eu, na minha idade, o Seiscentos e Sessenta e Seis. Entre um e outro que nossa memória recuperava, Lígia tocou no ponto nevrálgico da poesia, a inspiração: de onde ela viria afinal, se a realidade é a mesma para todos?

 Confiei-lhe a certeza que tenho de que a resposta está no olhar. Poetas e crianças têm um olhar distinto sobre as coisas, ou melhor, poetas talvez sejam aqueles predestinados que preservam pelo resto da vida o olhar infantil descobrindo o mundo como Adão e Eva em manhã de paraíso. Adélia Prado veio à minha mente: "De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo.” E a escritora mineira continua seu pensamento pedindo a Deus que lhe devolva a capacidade de encontrar poesia nas pedras.

Foi então que Lígia me contou o que havia ocorrido consigo e o filho mais velho uma hora antes, quando estavam descendo para o parquinho e eu ainda não me encontrava no jardim. Os três passavam pela ampla fachada de uma casa ao lado da minha, cujo dono resolveu exterminar a hera que cobria todas as altas e extensas paredes e criava um belo ar bucólico, daquele jeito de aristocráticas casas de campo do interior da Inglaterra, país onde Lígia morou um ano antes de prestar vestibular.

Ao observar a casa quase totalmente despida, que depois seria pintada de branco, o menino de cinco anos estacou de repente e mirou assustado as paredes sem a hera verde que ele gostava de admirar quando andava por ali. Elas mostravam agora no branco encardido as marcas escuras das gavinhas da trepadeira, um emaranhado de rabiscos confusos que a espécie imprimira. Talvez lhe parecesse imenso mapa do mundo desenrolado, contornos de países imaginários. De fato, era impressionante, e eu o sabia por ter sido espectadora do admirável caminho da trepadeira crescendo rapidamente e cobrindo a grande extensão, ficando fora de suas garras apenas uns poucos espaços de pintura próximos ao teto.

A mãe me contou que o menininho olhou frustrado para a casa desnuda e depois para ela, de forma interrogativa. Eles haviam voltado de férias no dia anterior e a imagem que ele mantinha da fachada ainda era a mesma de quatro semanas atrás, toda verde. Tentando encontrar o que a memória armazenara e a vista não reencontrava mais, o menino de cinco anos perguntou o que havia acontecido. Lígia respondeu-lhe que por alguma razão dela desconhecida os proprietários tinham resolvido arrancar a hera da parede. Diante da resposta, o filho disse para a mãe, com olhar entre triste e desconsertado: “Que pena! Logo agora que a hera estava abraçando a casa inteira!”

A partir da frase tão sensível, que concedia à espécie vegetal calorosa emoção humana, concluímos juntas que ali estava um tipo de resposta poética a um estímulo real. A imagem do abraço à casa poderia ser a semente de um poema que a alma daquele menininho gestaria até um dia qualquer quando novos olhares desveladores engendrariam outros versos de um poema que poderia- quem sabe?- se chamar “O dia em que o menino viu a morte da hera”. Ou, quem sabe, “Abraço, interrompido”.

E viva a poesia, e os poetas, pois sem eles a vida perde muito de seu encanto.

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

1 COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.

  • Mariza
    15/02/2024
    Esta crônica me reportou à canção sertaneja \"Mágoa de Boiadeiro\". De vez em quando, me pego refletindo até que ponto o progresso é salutar ... Anotei há tempos atrás esta frase : \" O avanço tecnológico, virtual, induz o ser humano à rapidez; é proporcional ao atraso espiritual. O desafio é viver no mundo tecnológico, virtual, sem se deixar prender a ele.\"