Admiro as pessoas que decidem, em determinado momento de suas existências, escrever sobre o que construíram de mais importante, expressivo, valoroso e gratificante na cadência dos dias, na soma dos meses, na contagem dos anos, na sobreposição das décadas, apesar da irrefreável voragem do tempo.
Toda autobiografia me parece gesto de extrema generosidade, pois além do esforço mental demandado pela pesquisa, há o tempo precioso que se despende, a disciplina a que o autor se submete, as diferentes emoções derivadas dos resgates - para mostrar ao leitor a construção de uma vida única, pois nenhuma é semelhante a outra e, ao mesmo tempo, todas trazem implícito algo comum já que tudo que é humano possui igual essência. Não disse o poeta que somos poeira de estrelas?
Na constelação em que todos estamos conectados, cada vida corresponde a um astro que pode brilhar mais ou menos, de acordo com sua potência inata, suas condições peculiares e as circunstâncias externas citadas por Orteg y Gasset, autor retomado por Niza Neila de Almeida Liporoni numa das páginas de sua recém-lançada autobiografia: “O rio que habita em mim”.
Mergulhei neste rio e me deixei banhar pelas palavras das 410 páginas em que a timoneira conta desde o início sua história de navegação pela vida. Mulher incrível que tive o privilégio de conhecer há algumas décadas, apresentada por sua cunhada, minha amiga Maria Rita Liporoni Toledo, a biografada se notabilizou até agora por dinamismo contínuo. Por isso, o leitor poderá acompanhar a cada página sua marcada evolução de menina a adolescente, de ginasiana a normalista, de universitária a doutora, de jovem a cidadã, de mãe a avó. Ao mesmo tempo perceberá as mudanças na fisionomia e na mentalidade dos pequenos lugares mineiros e da cidade de Franca, onde a autora viveu a maior parte de seu tempo, constituiu bela família e construiu sólida carreira acadêmica.
Oriunda de família de classe média baixa, que enfrentou muitas dificuldades para viver com dignidade e esperança, a estudante inteligente e disciplinada tinha desde muito cedo consciência de que deveria corresponder aos anseios do pai, para quem só a educação poderia criar condições de avanço na vida. Aluna colocada sempre entre as primeiras de sua classe, iniciou jornada profissional tão logo se formou no curso Normal. Obteve com a nota máxima uma cadeira-prêmio que lhe permitiu lecionar de início em escolas rurais, depois na periferia de Franca, de onde levou para seu livro breves pinceladas críticas do Brasil dos anos 60.
Dali ela alçou voo rumo à Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, recentemente instalada em Franca, e cujo processo acompanhou com interesse de quem via oportunidade de ampliação do conhecimento para si e para outros também interessados. De licenciada a mestranda e depois doutoranda, a trajetória foi pautada por muitas dificuldades, pois então já havia os filhos que demandavam cuidados. Mas o marido Fábio, que nos primeiros anos de casado cursara Direito, ali estava garantindo a presença quando ela precisava se deslocar para cumprir seus compromissos em cidades da região e em São Paulo, no campus da USP. Tudo deu certo, porém não seria verdadeiro dizer que os parágrafos anteriores resumem a biografia da autora. Quem assim deduzisse estaria incorrendo num reducionismo apequenador. Porque Niza, se teve na carreira um dos propósitos de vida, não se ateve apenas a ela.
Ao contar a sua história ela começa antes de si, e vai buscar suas raízes nos bisavós, avós e pais que lhe transmitiram admirável coragem para enfrentar desafios, vigor para trabalhar onde fosse necessário, grande amor pelo conhecimento. Na linha de seu tempo, destaca os irmãos e o faz de tal forma amorosa que consegue mostrá-los nítidos em suas características peculiares. Descreve os filhos e os netos com um orgulho grande e justificado: eles retribuem retratando-a em capítulos paralelos, com amor, respeito e admiração. As fotos que ilustram momentos de alegria da família são como os poemas de autores brasileiros escolhidos para abrir alguns capítulos: uma ode ao amor.
Niza Neila reveste muitas vezes sua linguagem de características literárias, confirmando o apreço declarado à literatura. Um afeto que pulsou cedo no coração da menina devoradora de livros da primeira estante que conheceu e, depois, já professora concursada, e trabalhando na biblioteca da FFCL, de todos os clássicos aos quais teve acesso, a começar por Machado de Assis. Nessas reverberações da ficção, a descrição das pelejas do pai, cioso de que os filhos estudassem em boas escolas, ou a do quintal da avó Mariquinha poderiam estar nas páginas de um romance enquanto o desentendimento de pai e filho, ambos folheiros, seria perfeita semente de um conto. Ainda singrando águas literárias, sob aspecto estético o livro me lembrou a matrioska, a boneca que contém várias bonecas de diferentes tamanhos dentro de si, colocadas uma dentro das outras, e de acordo com a cultura russa símbolo de maternidade, fertilidade, amor e amizade.
Penso que contar fatos vividos nem sempre significa trazê-los para o tecido textual exatamente como ocorreram. Isso se torna evidente quando quem conta conjuga memória e emoção. Com a sensibilidade apurada para as lembranças, sobrevêm com as palavras de quem escreve uma versão tecida a partir de recordações justapostas a aspectos da subjetividade.
E a subjetividade da autora nos desvela uma escritora sensível que emerge de seu rio interior em trechos líricos, reflexivos, como aquele do início do livro, em que Niza adulta se lembra da Niza menina, moradora de Delfinópolis, correndo a mãozinha pelas águas do rio e olhando a serra, desejosa de ver o que haveria atrás dela. Oito décadas depois, tendo visto muita coisa do mundo, ela retoma a imagem para finalizar a sua história: “Quando fiz a travessia do Rio Grande pela primeira vez e deitei minhas mãos em suas águas frias para senti-las deslizar por entre meus dedinhos entreabertos, eu não conhecia Guimarães Rosa e nem sabia que existe uma terceira margem do rio. Quanto mais fundo é o rio, mais desafiador é o mergulho para que alcancemos a terceira margem. Quanto mais vivemos, mas desafiador é encontrar nosso eu profundo”.
No epílogo, ela comenta sobre o trabalho que se propôs a fazer e enfim conclui: “Ao longo dessa empreitada, atravessei a imensa Serra da Canastra com Torquato e Mariquinha, vi minha mãe ficar órfã, revisitei o sobrado de minha bisavó, sentei no tamborete para ver meu pai trabalhar de marceneiro, andei em minha primeira bicicleta, descobri o quanto amava o estudo, brinquei em quintais imensos, ouvi confissões, amei, construí uma família e uma vida.”
Memórias escritas são de profunda importância também para a construção da própria história da comunidade onde a pessoa viveu e atuou, onde vive e continua atuando. A partir de relatos de indivíduos é possível traçar o panorama de uma época, pois ao se conhecerem os hábitos, pensamentos, conflitos, crenças e mentalidades delineia-se o panorama de como se vivia em determinado período e como os fatos se sucediam. Por conta disso escreve a professora, escritora e membro da Academia Francana de Letras, Regina Helena Bastianini, na orelha do livro: “Esta é uma história familiar, mas não é a história de uma única família. Os fatos aqui narrados transcendem a individualidade e inevitavelmente nos levam a trilhar a saga de incontáveis brasileiros em um período considerável da nossa História”.
Acredito que muitos leitores, particularmente os de Franca e Delfinópolis, vão se sentir próximos da autora que, de forma lírica e sutil, demonstra gratidão àqueles que a antecederam e criaram condições físicas e emocionais para que desenvolvesse todo o potencial com que foi agraciada ao nascer. Este é um sentimento precioso, de vinculação, que está escapando às novas gerações, aparentemente incapazes de olhar o passado e prestar um tributo aos que com trabalho, ética, amor e fé prepararam o terreno para a chegada ao mundo de mais um ser humano e o entusiasmaram pela vida e pela busca de um sentido que a dignificasse.
Volto a olhar a capa em tons verdes e azuis de Fábio Garcia. E busco no texto da contracapa, assinado por Tânia Liporoni, uma frase para concluir esta apreciação: “O rio, fonte de serenidade e de força, produziu nela inspiração e o sentido para sua vida. Vale a pena mergulhar nele!” Eu mergulhei e saí renovada porque alimentada por uma história que mostra desafios, lutas e conquistas em diversas gradações.
Precisamos de mais livros inspiradores como este, que nos convida à arte de existir, construir e resistir mantendo a leveza.
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Comentários
1 Comentários
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Mariza 27/02/2024Fui aluna desta mulher, cujo sorriso e positividade ficaram gravados na minha memória. No Curso de Pedagogia, na Fac.de Filosofia Ciências e Letras de Franca. Era um grupo composto só por mulheres; foi muito marcante. Na época ( 1970 - 1973 ), minha irmã Izabel e eu adaptamos a música \"De Tanto Amor\", do Roberto Carlos com uma letra dedicada a ela e à Meire Spessoto : \" Niza, nós estamos aqui, pra poder expressar, o nosso sentimento de admiração ...\" Amei sua crônica, Sônia Machiavelli !