NOSSAS LETRAS

“Tudo que é sólido desmancha no ar”

Por Sonia Machiavelli | Especial para o GCN
| Tempo de leitura: 6 min

Há ecos de Demócrito (460 aC-370 aC) na frase do título, muito replicada e discutida. Seu autor é o alemão Karl Marx (1818-1883), filósofo, historiador, jornalista e teórico político cujo pensamento contemplou acontecimentos sociais, econômicos, culturais e artísticos dos séculos XVIII e XIX, lançando luz sobre a modernidade.

O filósofo grego defendia a ideia de que partículas diminutas, indivisíveis e eternas, unindo-se e separando-se no espaço através de forças mecânicas, determinavam o nascimento e a desagregação de todos os seres. Quanto mais próximas as partículas, mais sólidas as coisas; quanto mais distantes, mais líquidas; se bastante afastadas, gasosas. Antecipava-se assim em mais de dois mil anos à noção de física quântica.

Os estados de impermanência descritos por Demócrito, se não autorizam a pensar que influenciaram o pensamento de Marx, de resto um atomista, podem ser aceitos como uma boa imagem para a Modernidade, ou as modernidades, se as entendemos como o conjunto de contínuas transformações em instituições, na economia, cultura e vida cotidiana. Se algumas vezes essas mudanças tiveram sua gênese em movimentos populares, como a Revolução Francesa que derrubou um regime monárquico, em outras foram causadas pela criação de máquinas que fomentaram a Revolução Industrial inglesa e marcaram o desenvolvimento do capitalismo.

A frase de Marx sobre a impermanência foi usada pelo filósofo Marshall Berman (1940-2013), judeu norte-americano, para título de seu livro lançado em 1981. É um conjunto de ensaios que convidam o leitor a pensar mais e melhor sobre o mundo que vem se transformando incessantemente, e de maneira tão impactante nas últimas décadas, que o também filósofo e sociólogo polonês Zigmunt Bauman (1915-2017) cunhou uma expressão para definir nosso tempo: “realidade líquida”. Este conceito busca traduzir a nova época em que as relações sociais, econômicas e de produção são frágeis, fugazes e maleáveis como os líquidos. Teria se iniciado depois da Segunda Guerra e se tornado mais perceptível a partir da década de 1960.  Na obra de Bauman o conceito de modernidade líquida se opõe ao de modernidade sólida, que traduziria relações com tendência a serem mais fortes e duradouras como as que caracterizaram a cultura europeia desde a Idade Média.

Com o aposto “A aventura da modernidade” apenso ao título, o livro de Bermann, publicado há mais de trinta anos, guarda uma impressionante atualidade, o que o leva a ser lido com muito interesse por aqueles que buscam entender os caminhos que nos trouxeram ao mundo descrito por Bauman. Seus cinco capítulos que ocupam 357 páginas formam um conjunto perfeitamente articulado, escrito em linguagem acessível e elegante, oferecendo vários caminhos a serem trilhados pelo leitor.

 Lá estão as pequenas cidades do século XVlll e os grandes empreendimentos da construção civil do século seguinte; as primeiras represas e usinas de força; o Palácio de Cristal de Londres e os bulevares parisienses do Barão de Haussmann; os projetos de renovação arquitetônica de São Petersburgo e as rodovias norte-americanas. E, na literatura, escritores como Goethe, Baudelaire, Dostoievski e alguns outros, “todos movidos ao mesmo tempo pelo desejo de mudança- de autotransformação e de transformação do mundo em redor- e pelo terror da desorientação e da desintegração, o terror da vida que se desfaz em pedaços.” 

A análise de Berman está centrada na ideia de que não se podem separar duas dimensões que fizeram parte das transformações ocorridas especialmente a partir do século XVIII: a espiritual, relacionada com a arte e o intelecto, os corpos e a alma humana, e a material, representada pelas estruturas físicas e processos políticos, econômicos e sociais. Ou seja, entre modernismo e modernização. Separar estas duas instâncias representa, na sua visão, não perceber a fusão e interdependência entre indivíduo e ambiente moderno.

 Sua análise recai também sobre a maneira como as populações dos países europeus vivenciaram a modernidade, ao mesmo tempo em que identifica na literatura do período as percepções desta fusão. Segundo Berman, os primeiros escritores e pensadores modernos possuíam forte intuição a respeito dessa interdependência e construíram personagens carregados de contradições, desejosos de mudanças e ao mesmo tempo amedrontados por elas.

Em Goethe, o autor tomou como exemplo Fausto, protagonista da obra homônima, que faz um acordo com o demônio, Mefistófeles, entregando-lhe sua alma em troca de nova vida. Para Berman, Fausto é percebido como o arauto da modernidade ao abandonar o mundo medieval, a religiosidade, a magia pagã, seus valores e sua ética e promover uma série de metamorfoses em si e no entorno, o que lhe custará um preço alto.

Em Baudelaire, mais que todo o poema As Flores do Mal, pinça a descontinuidade do tempo, a ruptura da tradição, o sentimento de novidade, a vertigem do que hipnotiza. As ruas, as calçadas, as fachadas.  O humano moderno em sua plenitude, com fraquezas, aspirações e desespero. O pulsar trágico da urbe. A beleza em lugares até então insuspeitados, para não dizer inconcebíveis.

Em Dostoievski, confronta o anti-herói ressentido de Notas do Subsolo, com um dos muitos personagens de Que fazer?, escrito na prisão por Chernyshevsky. Com o subtítulo Relatos sobre gente nova, esta narrativa   era ao mesmo tempo manifesto e manual para uma futura vanguarda que impulsionaria o ingresso da Rússia no mundo moderno. No capítulo/ensaio “Petersburgo: o modernismo do subdesenvolvimento”, cem páginas tratam não apenas de Dostoievski e Chernyshevski, mas também da singularidade da Rússia, da força de seus ficcionistas, da confusa modernização da cidade mencionada e do Palácio de Cristal de Londres, ícone de modernidade, avaliado de formas opostas pelos personagens imaginados pelos dois ficcionistas.  É uma joia literária.

Em Marx, salva o espírito de quase tudo o que ele escreveu, especialmente em O Capital: “Ao nascimento da mecanização e da indústria moderna (...) seguiu-se um violento abalo, como uma avalanche, em intensidade e extensão. Todos os limites da moral e da natureza, de idade e sexo, de dia e noite, foram rompidos. O capital celebrou suas orgias.”

No prefácio à primeira edição, 1981, avisa Berman a respeito de sua publicação: “Este livro pretende juntar essas obras e essas vidas e restaurar o vigor espiritual da cultura modernista para o homem e a mulher do dia a dia; pretende mostrar como, para todos nós, modernismo é realismo. Isso não resolverá as contradições que impregnam a vida moderna, mas auxiliará a compreendê-las, para que possamos ser claros e honestos ao avaliar e enfrentar as forças que nos fazem ser quem somos.” 

Muitos autores se debruçaram sobre o tema da modernidade e seu impacto sobre o indivíduo. Mas Berman se destacou por analisar de um jeito muito profundo o homem atravessado pela experiência. Morto há quase dez anos, em setembro de 2013, é sempre oportuno voltar a ele para continuar desvelando as dimensões da modernização e da modernidade. E para lhe dar razão quando diz, em momento onde outra revolução, a digital, apenas engatinhava e a palavra globalização não havia ainda se popularizado: “A modernidade une a espécie humana. Porém é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo onde “tudo o que é sólido desmancha no ar”.

Nada mais expressivo para sintetizar a dinâmica de nosso tempo, que os de minha geração observam com inútil perplexidade.

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