NOSSAS LETRAS

Enfim, saltou

Nascer é dar um salto, da eternidade para dentro do tempo. O contrário também, salto mais difícil e elaborado. Leia o artigo de Baltazar Gonçalves.

Por Baltazar Gonçalves | 12/08/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Nascer é dar um salto, da eternidade para dentro do tempo. O contrário também, salto mais difícil e elaborado. Não vamos chamar tal desfecho de morte porque Ela é apenas a porta dessa passagem mítica. O salto na volta desse eterno retorno é uma manobra de desapego incalculável de tudo quanto se pode imaginar que uma pessoa possa ter vivido. Difícil imaginar? Esqueça a palavra “religião” por um instante, o terreno aqui é movediço, mas só metafísica barata do tipo que bêbados entorpecem. Façamos um jogo, pense um zero.

Coloque um copo vazio sobre uma folha em branco, depois risque o papel contornando a borda circular do copo, tudo que sabemos ou intuímos, de nós tempo ou mesmo de deus, cabe no círculo desenhado, fora do desenho que parecerá um zero deve ser o campo do eterno, de lá não há certeza alguma e é até ridículo (mesmo sendo necessário e fundamental argumentar para que as civilizações se ergam): é de lá, eu dizia, do inominável, que o verbo plasma e fecunda no tempo nossa percepção de materialidade e paradigmas do real. Estou cansado de metafísica, queria mesmo uma cerveja bem gelada e assistir ao jogo do Palmeiras para gritar com a torcida eufórica.

De onde a vida vem e para onde parte ou fica a obra nela feita? Para onde a ventania toca todo esforço quando a morte nos deita finalmente? O tanto que foi dito pelos cotovelos quando se tinha toda razão do mundo, o quanto do sonhado e feito com esmero suor e lágrimas dá por fim no fado desfeito? E uma pergunta ainda brilhará no canto seco do olho na hora da partida: haverá leito ancestral divino para nossa memória que nos guarde? Maldito karma bendito fruto, bendigo o karma saúdo a vinha.

O tempo que separa nosso nascimento do desfecho irrevogável é como um susto, tão rápido passa que nem parece ter metido medo durante o percurso. A esperança de uns ilumina o desespero de muitos. Se acender a vela nas horas mortas da madrugada naturalmente verá o tamanho da escuridão em volta, é natural que aqueles que habitam o breu dos pórticos infernais desejem estar do seu lado se acender a vela nas horas mortas da madrugada. Na sua mente passam milhões de pensamentos por segundo, e quando dorme seu espírito ainda busca pela Verdade. Demora concluir que se trata de dádiva o desespero superado, toda lição demora tatuar nossa alma.

Seu bebê é lindo e nasceu no dia de Reis vejam só, motivo de festa todo ano lá no céu. Manuela já entrou na quinta série, José! Sumi nada meu querido, estava com dengue e quase morri sozinho naquele apartamento. Meus pais morreram de covid, minha tia cuida dos meus irmãos e eu me perdi na vida como você pode ver pedindo centavos no semáforo. Estou grávida de três meses e desempregada, mas o Clodoaldo vai ganhar promoção no Magazine Luiza e vamos financiar uma casa quando ele sair da reabilitação. Qual a idade da sua mãe, ela parece mais velha que a minha com 75 e com essa disposição?! Na minha lápide pode ler meu último verso: enfim, saltou.

Toda estreia tem no rastro largo rabo de cometa, seja na arte ou na vida que já não se sabe qual copia quem, o caldo largo de eventos chega no estreito que vai afunilado até a personagem dizer seu texto, antes escrito por um poeta talvez, assim: esse salto magnifico para o desconhecido é tragicamente belo. Sim. Sim. Sim. A plateia aos poucos acorda do sonambulismo e canta em coro:   a vida se recompõe a cada rotação da Terra e nada ou ninguém pode esperar decisão tardia, procrastinada metodicamente dentro da nossa obsessão de acreditar que depois será diferente, só depois valerá a pena, que a domesticação dos impulsos soberanos do corpo nos dará o controle nas adversidades. O diretor da peça que estreia simula credulidade e um Hamlet corrompido para um final feliz que pode vender mais no horário nobre conclui o diálogo: quando nos falta fé, tomamos emprestada daqueles que podem nos inspirar, que o baile siga o ritmo das eras.  E renovando a letra da canção faz-se no breu as cortinas cerrarem sob ovação de mil palmas aos ouvidos.

Atrás dos gestos na imagem que aplaudimos há milhares de palavras mortas a cintilar agonia. O nascimento de uma ideia no ovo da criação, a gema espremida entre casca e ostracismo. O germe sêmen lastro rastilho de vida é pólvora que brilha trilhando do início ao fim para reinaugurar origens ancestrais. Assim o que nunca foi dito embora pensando, o que embora pensado não terá sentido, o sempre sentido nunca mais aflorado na couraça muscular que nos reveste o caráter no sufoco sussurrando uma prece aos gametas na formação das galáxias que também nascem e morrem, e sua luz nos chega com atraso a contar coisas inúteis como a imensidão de um zero no vazio de qualquer Bill.  Para dentro do tempo ou para fora, o salto mais difícil e elaborado será tornar leva a insustentável leveza do nosso breve e belo voo.

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