NOSSAS LETRAS

Live memorável

Menalton Braff apareceu na tela do meu celular com aquele semblante sereno, igual ao de duas décadas atrás, quando esteve em nossa cidade. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 05/08/2023 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN

Menalton Braff apareceu na tela do meu celular com aquele semblante sereno, igual ao de duas décadas atrás, quando esteve em nossa cidade a convite do professor e escritor Luiz Cruz de Oliveira; ou o mesmo que divisei em palestra concorrida numa das edições da Feira do Escritor em Ribeirão Preto. Completou no último julho 85 anos com a lucidez, criatividade, calor humano e amor à palavra que o revelaram desde o conjunto de contos À Sombra do Cipreste, de 1999, contemplado com o prêmio Jabuti no ano seguinte. Este livro foi o primeiro que assinou com o próprio nome; antes havia usado o pseudônimo Salvador dos Passos em duas obras. Desde então vem publicando em média mais de um livro por ano. Ao todo são vinte e nove e o último deles, no final de 2022, chama-se Tocata e Fuga a Quatro Vozes.

Por quase duas horas, na tarde de sábado passado, ele esteve na live criada por Vanessa Maranha no Instagram para mostrar aos interessados em escrita criativa algo que considero misterioso, para não dizer quase sagrado: o modus operandi do autor, aquele ser que escreve atendendo a um princípio básico segundo o qual o plano da expressão sobrepondo-se ao do conteúdo fundamenta a literariedade.

Já que “escritor” é quem escreve sobre qualquer assunto, como costuma reiterar Braff, melhor usar o termo “literato”, frisou ele, para nos referirmos aos que, sustentados em primeiro lugar pelo amor verdadeiro à palavra, criam mundos a partir de experiência emocional que os toca em profundidade e será transformada até ganhar a concretude textual de um jeito sui generis. “O modo de dizer será mais importante do que aquilo que é dito.”  Tive de fazer uma inflexão diante do “literato” verbalizado por ele, vocábulo que eu não achava adequado aos ficcionistas, ou melhor, considerava pejorativo. Bani de mim um preconceito. Antes tarde do que nunca.

Menalton abriu a live contando que no seu processo de escrita a semente responsável por germinar uma história curta ou longa pode ser palavra, timbre de voz, raio de sol, fragmento de frase ouvida ao acaso, chuva, flor, certa paisagem urbana ou rural onde o mistério parece habitar, sonho, fato do passado recuperado pela memória, casinha no alto da montanha que corre o risco de desabar durante temporal. Etc.

Falou de seu hábito de anotar ideias que surgem de repente e, se não são fixadas num papel, podem desaparecer. Assim me fez lembrar de reportagem sobre Guimarães Rosa, outra a respeito de Carlos Drummond de Andrade, uma terceira com Vanessa Maranha, todos apegados a seus caderninhos de anotações. Ficou a dica para os iniciantes.

Resgatou seus anos de menino que frequentava a biblioteca do pai, o adolescente que se interessou por poesia, o estudante que descobriu a beleza dos autores clássicos. Rememorou o bloqueio da escrita sofrido depois da graduação em letras. E cunhou uma frase antológica: “Não somos nós que escolhemos a literatura; é a literatura que nos escolhe”.

Lembrou de algo sobre o qual deveríamos atentar mais: Machado de Assis como criador do romance urbano no Brasil, então um país rural, onde os escritores, quando não imitavam autores europeus, escreviam sobre a gente do campo mesmo vivendo na cidade. E se estendendo sobre a genialidade de Machado colocou ênfase ao dizer que Dom Casmurro poderia ter sido escrito hoje, sob o ponto de vista de que o drama que apresenta é atemporal por ser profundamente humano.

Trouxe à baila, em determinado momento, a absurda argumentação dos que pretendem censurar, por conta de racismo, do tal politicamente correto, a obra de Monteiro Lobato, este ficcionista cuja influência sobre leitores e escritores de várias gerações foi fundamental. Lobato escreveu entre os anos 20 e 50 do século passado: como adulterar a história? “O escritor é expressão de sua época”, arrematou citando Antônio Cândido.

Em resposta a Vanessa Maranha, que comentava a forte impressão sofrida durante a leitura de “Na teia do sol”, esclareceu que “neste romance os sentimentos são biográficos, mas o enredo não” e sugeriu que forma, vivência, invenção e memória estão conectadas na gênese e no corpo de todo gênero ficcional.

Motivados, os interessados em literatura se manifestaram e para todos o ficcionista teve uma palavra esclarecedora sobre a importância da primeira frase de uma narrativa, a complicada composição de personagens, o duro trabalho entre o começo e o fim de um conto ou romance, o perigo da pressa, a dificuldade de publicar.

Então chegou a hora de abordar um tema caro aos preocupados com a educação. Menalton, que lecionou língua e literatura até se aposentar, atentou para o fato de que em nosso país “a escola não está dando aos alunos a oportunidade de afinar o gosto literário”.

Essa última frase me levou a pensar no ensaio do jornalista A.G.Scott, do The New York Times, publicado no mês passado, onde ele nos lembra que ”a crise da leitura também reverbera nos escalões superiores da educação. Enquanto os modelos de gestão corporativa e as leis estaduais transformam a academia em um posto avançado da gig economy, as humanidades perdem seu brilho para os alunos da graduação. Cada vez menos alunos estão se formando em língua e literatura; muitos dos que o fazem têm se afastado das obras canônicas rumo à cultura pop”. Parece escrever sobre nosso país.

Este é um brevíssimo relato da live que considerei muito mais que uma aula sobre o fazer literário. Graças ao projeto contemplado com o Bolsa Cultura, da Prefeitura Municipal de Franca/ FEAC, quem assistiu enriqueceu-se com a conversa generosa, boa, calorosa e verdadeira sobre criação, vivências, sentimentos, palavras, língua, escritores, política, humanidades e o status da leitura nesse momento conturbado que vivemos.

Se você, leitor que lê estas linhas, tiver interesse nesses temas, saiba que pode assistir à íntegra da live. Ela foi gravada e está à disposição no Instagram. Basta acessar o link:  https://www.instagram.com/reel/CvS57wnhvOt/?igshid=MzRlODBiNWFlZA==

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