NOSSAS LETRAS

A metonímia como homenagem: melita e pilates

Bem dizem os psicólogos e os sábios: na falta é que se cria; a abundância muitas vezes pode ser impeditiva. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 29/07/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

“Daqui a pouco vou ao pilates; depois passo no supermercado para comprar melita.”

Esses dois substantivos, pilates e melita, presentes no cotidiano de muitos e já tornados comuns nos idiomas ocidentais, foram um dia nomes próprios e, portanto, escritos com inicial maiúscula: Pilates, Mellita. Faz tempo que deixaram o patamar individual e alçaram o coletivo. Quem não conhece o filtro para coar café? Quem nunca ouviu falar do método que tem por princípio utilizar o peso do próprio corpo para executar movimentos?

No âmbito da linguagem, chamamos a este fenômeno de metonímia. É figura que consiste no emprego de um termo por outro, mantendo relação de proximidade com o referente da palavra substituída. Então, pilates em lugar de exercício, melita em lugar de filtro. Todo idioma conta com o seu conjunto de metonímias em constante ampliação.

No âmbito da economia, os dois casos exemplificam a ação de empreendedores. Este último vocábulo, numa visão mais simplista, pode definir pessoas que iniciam algo novo, ainda não visto no seu entorno, conseguindo sair da área do sonho e do desejo para tornar concreto o que a imaginação produziu.

Quando você passa seu café num melita, é provável que não saiba que ele nasceu na mente de uma mulher desejosa de produzir bebida sem resquícios de pó, incomodada que se sentia com os restos dos grãos moídos depositados no fundo da xícara. Essa mulher se chamava Mellita Bentz (1873-1950) e morava em Dresden, cidade alemã onde havia nascido, casado, e tido dois filhos. Na cozinha de sua casa, passou a fazer experimentos para tornar o consumo da bebida mais agradável. Foram muitas tentativas malsucedidas até que lhe brotou um insight ao olhar o mata-borrão (já quase desaparecido por desuso) usado pelo filho nas tarefas escolares. Se aquele papel grosso e áspero filtrava as impurezas da tinta de escrever, era possível que absorvesse também partículas de grãos. Colocou então um pedaço desse papel na base de pequena lata onde tinha feito alguns furos. E ajustou a lata sobre uma xícara. Colocou o pó sobre o papel, derramou água fervente e o líquido escorreu pelo papel formando um líquido uniforme e sem resíduos. Melitta havia criado o primeiro filtro de café do mundo, usado hoje em todos os continentes. Mas antes que ele se tornasse marca sólida, a idealizadora passou por maus bocados: na Primeira Guerra, por conta da falta de papel e de café; na Segunda, porque Hitler transformou sua fábrica em produtora de artefatos de guerra. 

Nessa mesma época e país nasceu Joseph Pilates (1883-1967), desde a infância acometido por asma e febre reumática. Para melhorar a saúde do filho, o pai, um ginasta, e a mãe, especialista em remédios naturais, o iniciaram em técnicas respiratórias, ginástica e dança, o que lhe foi muito benéfico. Adulto, ele se mudou para a Inglaterra, onde durante a Segunda guerra foi preso junto com outros alemães. Ao ver soldados com fraturas, imobilizados, sem tratamento, Pilates quis ajudá-los. Retirou algumas molas das camas e as prendeu nas cabeceiras, de modo a criar um equipamento improvisado que permitia exercícios de restauração muscular. Essas camas com molas seriam mais tarde transformadas em equipamentos importantes para recuperação de pacientes. Terminado o conflito, voltou à Alemanha, mas decepcionado com as políticas do seu país emigrou para os EUA. Durante a viagem conheceu uma enfermeira, Clara. O casal se fixou em Nova York onde criou um método com exercícios capazes de aliviar dores nas costas e outras. O estúdio nova-iorquino recebeu milhares de pessoas até os anos 60. Nessa altura os exercícios de Pilates, ou só pilates, porque a lei da economia vigora em toda língua, já haviam se tornado muito conhecidos e nas décadas seguintes ganhariam o mundo.

É interessante observar que os dois grandes conflitos do século XX, que poderiam ter representado obstáculos quase intransponíveis aos ideais de Mellita e Pilates, não foram capazes de demovê-los de seus propósitos. Bem dizem os psicólogos e os sábios: na falta é que se cria; a abundância muitas vezes pode ser impeditiva.

Hoje os verbetes melita e pilates fazem parte do léxico de dezenas de idiomas. A metonímia ganhou força e garantiu seu lugar como substantivo concreto nos dicionários. Essa é a grande homenagem.

Os dois criadores construíram algo que permanece, integrando o rol de inúmeras outras invenções que tornam melhor a vida cotidiana. Nesses pequenos legados pulsam ideais de inventividade, sonho, vontade de fazer algo que seja útil não apenas ao indivíduo, mas – o que deve ser considerado de suma importância – ao coletivo.

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