Estava caminhando numa dessas bonitas manhãs de céu azul e ar fresco que em junho prevalecem no sudeste, e pensava num livro que havia acabado de ler - “Cesto de Caquis”, de Edson Iura. De repente levantei a cabeça da calçada irregular, feito armadilha para meus pés de terceira idade, e vi, elegantemente erguido, no jardim de uma pequena casa, o caquizeiro com alguns frutos maduros e poucas folhas. Não sei dizer se foi coincidência ilustrada pelo acaso ou se, por eu estar refletindo sobre os hacaicais que eram tema do livro, minha atenção instintivamente o focou. São comunicações misteriosas que costumam surpreender quem escreve e costumam me impactar. Fiquei literalmente hipnotizada pelo lindo recorte que a natureza me oferecia e relembrei o haicai que o monge budista zen Francisco Handa usou na “Apresentação” da obra citada, com o título “Cesto saboroso de caquis”.
“Ao comer caqui
Ouve-se um sino tocar-
Templo de Hôryûji”
Este conjunto de três versos curtos foi criado no século XVI por Bashô a partir de longa tradição de poesia coletiva japonesa, de longe parecida com os repentes nordestinos brasileiros. Mesmo concisos e objetivos, os haicais possuem grande potência poética. O tradicional tem forma fixa de três versos formados por 17 sílabas, no esquema 5/7/5, como no poema acima.
Embora esse seja seu formato oriental, o haicai foi se modificando ao conquistar adeptos em línguas ocidentais. Com o tempo, autores de diferentes idiomas, diante da impossibilidade fonética de reproduzir o efeito dos sons da língua nipônica, optaram por uma silabação livre. Os temas mais explorados são os referentes à natureza, embora modernamente tenham aparecido outros como o amor, o cotidiano e até problemas sociais. Enfim, no seu estilo popular, busca de forma sintética retratar experiência concreta por meio do equilíbrio entre métrica e mensagem.
Ao nosso país ele chegou com imigrantes japoneses cuja primeira leva aqui aportou há 117 anos no navio Casato Maru. O crítico literário Afrânio Peixoto foi um dos primeiros a apresentá-lo aos leitores comparando-o com nossas trovas mas considerando que seu molde era de fato virtude inerente ao idioma que o concebeu. Mesmo assim, vários brasileiros aderiram ao gênero, encontrando-se entre os mais representativos o próprio Afrânio Peixoto, Guilherme de Almeida, Olga Savary, Helena Kolody, Fanny Dupré- que publicou em 1949 a primeira obra feminina do gênero. Há outros. Três nomes reconhecidos nesta arte são Paulo Leminski (Viver é superdifícil/ O mais fundo/ Está sempre na superfície”), Millôr Fernandes (“Nos dias cotidianos/ É que se passam/ Os anos”) e Alice Ruiz (“Assombrada por você/ Minha sombra/Se esconde de mim”).
Haicai autêntico não tem título, é simples e sóbrio, mostra-se marcado por casualidade e sentimento de solidão. Por conta da aparente singeleza parece fácil escrever um. Engana-se quem assim pensa. Porque os versos devem reunir a tradução de um insight, a captura de algo surpreendente e o encontro de palavras exatas que fixem um vislumbre apreendido pelos sentidos e coração. Um haicai é a verbalização de um flash emotivo.
Bashô jovem viu o rapidíssimo lance de uma rã saltando para as águas de um tanque e assim descreveu o momento: “No velho lago/ a rã pula dentro/barulho d’água”. No meio da existência grafou: “Sob o sol da manhã/ Uma gota de orvalho/Precioso diamante”. Quase no final da vida, diante de um jardim, escreveu: “Quero ainda ver/nas flores no amanhecer/a face de um deus.” Centenas de outros poetas, em idiomas diversos, inclusive português, ousaram inutilmente o plágio, que é aliás, uma forma de admiração, se é que isso os redime.
Diante do caquizeiro carregado de frutos maduros, ouro sobre azul na manhã translúcida, fui tentada a criar um haicai que traduzisse meu sentimento frente ao belo e à última estação do ano. Não consegui, mesmo sendo intensa a emoção que me abraçava e deixou meus olhos marejados: todas as palavras que imaginava emergiam pobres. Desisti.
Então fiz ali / a foto que ora mostro/ do pé de caqui.
Post Scriptum
1. Caqui é palavra de origem japonesa
2. O livro “Cesto de caquis” é da editora Kondo e pode ser adquirido pela Amazon
3. Haicai significava aproximadamente “brincadeira com palavras”, até Bashô recriar o gênero.
4. Com caquis maduros japoneses preparam hoshigaki, trança de frutos amarrados a um barbante e colocados a secar ao ar livre.
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