NOSSAS LETRAS

Desejos

Não sou nada do que queria ser. Leia o artigo de Lúcia Brigagão.

Por Lúcia Brigagão | 22/07/2023 | Tempo de leitura: 3 min
Especial para o GCN

Não sou nada do que queria ser.

Queria ser muito chique, daquelas de andar o dia inteiro de sapato de salto; ter um mortífero olhar 43; dormir impecavelmente vestida; acordar sem precisar escovar os dentes (acho que gente chique prescinde disso pois não tem cheiros desagradáveis), cabelos no lugar, vestir o negligé, suavemente depositado aos pés da cama.

Queria andar feito fada, pousando meus pés no chão, docemente. Queria não ter piriri, nem pegar bicho de pé. Queria não alterar a voz quando me chateiam. Falar ao menos três tons e meio mais baixo, e reservar a tonalidade típica do meu dia a dia, do meu cotidiano, apenas para quando tivesse que berrar. Queria nunca ter dado uma resposta malcriada, ter paciência quando alguém fura a fila onde estou posicionada.

Toda vez que pedem minha opinião, sinto-me à vontade para perguntar: “quer saber a verdade ou a mentira?”. Sou sincera, a resposta do interlocutor, não. Ou, pelo menos, eu não acerto ou não entendo a mensagem. Quando dizem sim, que eu preciso falar a verdade, eu falo, mas em geral não agrado. Quando dizem não, que eu devo mentir, eu minto e saem me agradecendo, achando que fui sincera, entendeu? Não acerto.

Saí totalmente diferente da minha concepção arquetípica. Saltos altos – tão femininos e sedutores, têm me dado dor nas pernas; sou míope, às vezes não enxergo um palmo na frente do meu nariz. Mesmo fria a noite, durmo com pijaminha doll renquém, de malhinha fininha, feio, molinho e desbotado. Um primor! Enfio-me sob um cobertor cheio de felpas, com estampado imitando oncinha. Meu marido dizia que era uma onça aquecendo outra, sem especificar se é onça de brava ou onça de feia. algum dia ainda lhe perguntarei sobre isso e, se ele, como sempre que se sentia preso em armadilha responder se quero a verdade ou a mentira, já terei entendido a resposta.

Não sou nada do que queria ser. Gosto das pessoas, acredito nelas, ajudo para lá do que devia, passo por cima de cochichos, comentários feitos à boca pequena na minha frente, não ligo se me acharem ridícula e sou até inconsequente comigo mesma quando se trata de fazer algum bem, mesmo a quem não merece. Passo por boba. Só passo...

Pessoa badalada para quem eu nunca dei muita bola, até ignorava, numa linda festa me colocou literalmente encostada na parede e afirmou que eu não gostava dela e ela sabia o porquê. Era verdade. Motivos meus: chata, pernóstica, ego lá nas alturas, esnobe. Dava nos meus nervos: fumava com a pontinha dos dedos, soltava a fumaça como quem manda beijo, sabe aquela que se achava? Era ela... Motivo único, na sua ótica - e ainda afirmou que era evidente: eu teria ciúmes dela. Não sou nada do que queria ser. Se eu fosse, teria dado boa gargalhada e dito, em voz alta, o que pensava dela, repetindo as estrofes da antiga poesia: não gosto porque você é “tola, vaidosa, atrevida, soberba, inculta e banal”. Ou, o que não é meu feitio, teria simplesmente desmentido. Ou dado as costas e sair sem falar nada...

Nessa atual fase da vida fiquei boazinha, concluo. Muitas vezes sinto-me ofendida, mas baixo a cabeça e, sem revidar, só fico triste. Acredita? Vou largar mão de terapia e volta a ser o tsunami que eu era.

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