NOSSAS LETRAS

'Alma despejada'

Títulos que não são óbvios costumam despertar maior atenção para aquilo que de fato desejam traduzir. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 15/07/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Títulos que não são óbvios costumam despertar maior atenção para aquilo que de fato desejam traduzir. O que seria uma alma despejada? Foi o que me perguntei ao saber que Irene Ravache estava no Teatro Renaissance, em São Paulo, com peça homônima. De imediato pensei no uso corriqueiro do adjetivo para designar ação concreta ligada a locatário. Mas ao atrelá-lo a um termo de sentido abstrato, no caso “alma”, o que pretenderia transmitir Andréa Bassit, a autora do texto dramatúrgico, escrito especialmente para a renomada atriz brasileira? Não foram necessários nem dez minutos dos noventa do monólogo para eu descobrir do que se tratava.

Se no latim “pejar” significa colocar obstáculos, usar uma peia (corda ou laço) para amarrar pelos pés um ser vivo, com o acréscimo do prefixo “des” o verbo ganha significado oposto: soltar, liberar. Competente no uso das palavras como a protagonista Teresa, a escritora vinculou com muita sensibilidade e coerência o desalojar de uma casa e de uma alma.

A metáfora é potente para contar a história de uma professora de ensino médio de setenta anos, que morreu há pouco tempo mas costuma visitar sua casa de vez em quando para matar saudades dos seres que ainda a habitam, como o marido, os filhos e o netinho; e também para rever coisas que lhe eram prazerosas  em vida, como o assoalho de madeira (que será  trocado por por-ce-la-na-to!), a fonte do jardim (retirada por ser considerada coisa-de-novo-rico), a caveira decorativa (lembrando o Hamlet na frase icônica- ‘ser ou não ser’?) e outros objetos apenas sugeridos porque estão guardados em frágeis caixas de papelão embaladas para mudança. Vendido o imóvel, cabe à ex -proprietária “cair morta afinal”, como diz com graça. Entre outras coisas, é de sua última visita que trata a peça.

Se o leitor por acaso estiver pensando que isso é spoiler, engana-se: tudo é contado nos minutos iniciais pela própria protagonista, como a síntese do que virá aos poucos, a conta-gotas, e sobre isso não direi mais nada. Até porque o importante mesmo são as palavras com que o enredo é construído, tecendo com humor e pitadas de tragédia a biografia de uma brasileira nascida em família de classe média. A história pessoal faz o público resgatar momentos da história do nosso país nos últimos cinquenta anos. Dessa forma, ao promover um inventário de sua vida particular, relembrando momentos felizes e infelizes, a personagem também traz à tona, de forma sutil, períodos difíceis da vida nacional. Sintomática e oportuna é a presença da corrupção que une os dois eixos narrativos na figura do marido Roberto.

Falar de morte costuma ser pesado. Mas a maneira como Andréa Bassit concebeu a peça, Elias Andreato a dirigiu e Irene Ravache a iluminou leva o público a sentir leveza durante o monólogo que se mostra mais pertinente à vida, a ser valorizada a cada minuto, que à morte, da qual ninguém escapa.

O despejo das coisas materiais, esse movimento a que costumamos chamar desapego, emerge o tempo todo como necessidade, lucidez e urgência. A frase tão conhecida de todos, porém nem sempre introjetada, é retomada em instante nevrálgico por Teresa: “Somos só um punhado de pó”. O gesto que ela faz ao proferi-la recorta-se no ar, torna-se inesquecível. E nos remete ao título e à etimologia, ciência de muito interesse da personagem desde a infância: “inquilino”, termo que não aparece no monólogo mas é sugerido de forma cumulativa, fala após fala, é todo aquele que ocupa ou usufrui de um imóvel do qual não é proprietário.

O corpo é a morada da alma e costumamos atulhar esta casa com tantas coisas insignificantes que pode ser custoso desalojá-las, eis uma das mensagens.  Ao ser apresentada em retrospecto à sua própria vida, e, a partir dessa visualização, encontrar o entendimento da sua existência, a protagonista nos convida a lidar com a memória sem medo dos demônios que nos perturbaram e sem a nostalgia dos sonhos que nos alimentaram.

Um aspecto que considerei relevante foi o tratamento dado à velhice. Na contemporaneidade, onde a juventude é tão exaltada, já vai se tornando raro encontrar idosos vitalizados em cena. Como Teresa, que, mesmo morta, convida o espectador a apreciar a vida, não importa a faixa etária em que se encontre ou na qual o inserem na sociedade onde tudo o que é velho deve ser descartado para dar lugar ao novo.

Do ponto de vista da intérprete, que inspirador, e que beleza, é ver a atriz de 78 anos confessos mantendo fluência, energia e memória por noventa minutos ininterruptos, levando o público a beber suas palavras e expressões em comovente silêncio, algumas vezes entrecortado por risadas comportadas e outras pontuado pela tensão diante de um fato pungente. São momentos preciosos, oriundos do transbordante talento que a atriz renomada vem mostrando aos fãs que a acompanham ao longo das últimas décadas em peças, filmes e telenovelas.

Bradar “Bravo!” ao final de “Alma despejada”, magnífico exercício solo, é pouco.

PS

1.O expressivo trabalho de iluminação tem a assinatura do filho da atriz, Hiram Ravache.

2.O monólogo foi escrito em 2015, mas a peça deixou de ser apresentada durante a Covid, retornando aos palcos em 2022.

3.O texto ganhou a plataforma impressa na editora Giostri com o mesmo título e pode ser adquirido pela Internet.

4. A peça continua em cartaz até o dia 31 deste julho no Teatro Renaissance. Quem tiver interesse, que reserve antes o ingresso, pois todas as sessões, até agora, lotaram.

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