NOSSAS LETRAS

Claraval

A transcendência não é caminho para o alto se o céu não existe, transcender é movimento para dentro fundo no inferno guardado íntimo. Leia o artigo de Baltazar Gonçalves.

Por Baltazar Gonçalves | 24/06/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

“Eu suponho que nós mulheres somos tão covardes que achamos que um homem nos salvará dos medos. E nos casamos com ele.”
Lucy, no romance DRÁCULA de Bram Stoker

A transcendência não é caminho para o alto se o céu não existe, transcender é movimento para dentro fundo no inferno guardado íntimo. Quero ser honesto uma vez na vida e dizer a ela que nosso amor não é suficiente para um casamento. 

E lá estava eu, mais uma vez na estrada querendo não pensar em nada.  Não sou o tipo que busca transcendência, esse papo de filosofia holística nunca me pegou. O que me interessa mesmo são as fontes claras do conhecimento científico e a procedência exata dos resultados práticos. Descer a Serra de Claraval é apenas saber das curvas fechadas, o horizonte amplo aberto e recortado nas sombras que varrem o vale pela manhã. Nesse interior dos interiores, o Estado de São Paulo divisa Minas Gerais ali parada no tempo, encravada aos pés do belíssimo mosteiro cisterciense no sopé de Claraval. Soube que os melhores ourives do Brasil vivem neste vale, eu precisava de um anel singular se quisesse mesmo me casar. Com esse pretexto cheguei à casa do Avelar. Fui recebido por sua esposa, algumas crianças brincavam no terreiro de onde a Serra inteira de tão perto parecia colada nos olhos. Hospitaleiros, conversamos um bocado. Café, bolo de fubá, queijo fresco e queijo curado e queijo cozido. Precisava decidir qual pedra de qual quilate em qual armação, a demora na dúvida deu oportunidade ao anfitrião de contar-me a história de Amarilis.

Segundo Avelar, o que me contava tinha acontecido exatamente assim mesmo de verdade, há muito tempo na fazenda onde seria construído o sólido mosteiro cisterciense. Assim que percebi o tom da narrativa, pensei: mais uma história de amor; mas disse: acreditar no amor exige esforço; ao que Avelar respondeu: saber do amor pode ser tão poderoso quanto bala de revólver.  

Avelar contou que Amarílis sonhava amar um dia. Vivia entre árvores e bichos, e de sondar pessoas tristes quase sempre ouvia “quem ama sofre”. Pois quero morrer de amor, a moça dizia, e decidida clamava aos céus; em desatino, rogava aos infernos: quero morrer de amor. O pôr do sol é bem cedo entre serras. As casas se escondem nas sombras projetadas nesse sentido, no fundo do vale. Já era noite quando a graça do tormento lhe fora concedida. Aos poucos, não de pronto por magia como nos causos mineiros que o povo simples da roça conta. Graça e milagre sabem o tempo. Amarílis tinha os sentidos entre a horta e os canteiros, o vazio no peito desejava ardentemente auxílio.  Quando o que havia de ser não podia esperar mais, deu-se. Nas sombras recolhidas, na penumbra expandida: na soleira da janela cambalevoando esgueirou-se um morcego sobre os ombros de Amarilis. A criatura indefesa, mal pousada debaixo da cama, se debatia. Foi amor à primeira vista, puro espanto. Compadecida e sem medo, Amarilis curou a asa quebrada e aqueceu o convalescido. Sentiu pena. Sentir dó pode ser perigoso para quem se apaixona. Entregues indefesos, fizeram companhia um ao outro até o crepúsculo do sétimo dia. Até lá, as horas passaram enevoadas. Tempo não voa. Amarílis cantava modas antigas colhendo flores no campo como se fosse uma abelha rainha. Com mel e ternura alimentou seu hóspede. Em sua fantasia era amor o que sentia. O bicho por sua vez permaneceu como chegara, com ares de orgulho e faminto. Dentro desse nevoeiro, embora curado e pronto para voar, a criatura serviu aos caprichos de amarílis. A moça se curvava para acariciá-lo e ele, também curvando-se de forma elegante, recebia os dedos roçando o pelo macio. Foi no crepúsculo do sétimo dia. Ao entrar no quarto com o pote de mel nas mãos, Amarílis paralisou diante de uma visão aterrorizante: das patinhas frágeis erguia-se um homem. O mel que trazia escorreu até os pés, ela tremia. O homem sorriu mostrando os dentes. Vestido apenas de trapos e fios de lã, tinha um brilho nos olhos que não se compara. Ele dá um passo firme, ela paralisada; ele dá outro, ela recua. Ele avança, penetra a atmosfera dela e dobrando os joelhos lambe o caule adocicado quando Amarílis cede nos braços do amor assassino. O vampiro retornou por sete luas para desabrochar Amarílis com seus dentes afiados. Não viveram assim felizes para sempre, mas quem pode medir amor e vida?  

Nessa altura, percebendo meu envolvimento, Avelar disse que era desse modo que os antigos alertavam os jovens para os perigos de viver. O senhor sabe, de amor ninguém morre, rematou o ourives oferecendo mais café. Avelar era um excelente ourives e bom contador de histórias. Explicou-me que foi por essa razão, a morte de Amarílis, que as terras da fazenda foram vendidas para a construção do mosteiro aos cistercienses. Perguntei se a intenção dele em contar aquela história bonita e triste era me vender o anel ou dissuadir-me do casamento próximo. A família toda riu, e serviram mais café e queijo curado. Comprei o anel. 

Antes do sol se pôr, subindo a estrada de volta, eu descia fundo mim. As curvas da Serra de Claraval acentuavam as sombras que me seguiam. Tinha a impressão de levar aos ombros um vampiro velho conhecido.

Baltazar Gonçalves é historiador e escritor membro da Academia Franca de Letras

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1 COMENTÁRIOS

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  • Helena Gomes
    24/06/2023
    bravo!! que maravilhoso..Parabens pelo texto.