NOSSAS LETRAS

O diário de uma favelada

Nos muitos cadernos que formarão o livro, o racismo é frequentemente trazido à tona, por vezes de forma irônica, como em 13 de maio de 1958. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 24/06/2023 | Tempo de leitura: 8 min
Especial para o GCN

“A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorre. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde moro”.

Com essa comparação entre vida e livro, Carolina Maria de Jesus encaminha-se para finalizar seu livro Quarto de Despejo, diário que escreveu em vinte cadernos encontrados no lixo que durante cinco anos catou nas ruas de São Paulo para sobreviver e dar de comer aos três filhos pequenos, num barraco da favela do Canindé.

Quem viveu antes da expansão da era da informática deve se lembrar dos diários. Diálogo íntimo entre quem escreve e o papel onde se depositam experiências, ideias, opiniões, sentimentos, desejos, acontecimentos fortuitos ou banais, um diário pode ser considerado autobiografia. Alça importância histórica quando dá testemunho de uma época, que é o caso do “Diário de Anne Frank”, sobre o período em que a adolescente judia permaneceu escondida dos nazistas; e relevância literária quando a escrita também registra o espanto de quem passa por experiências que fogem dos limites da normalidade e por isso precisam ser tornadas públicas. Nesse sentido, o caráter extraordinário do diário de Carolina Maria de Jesus é o relato da fome- a sua, mas principalmente a de seus filhos. 

Publicado em 1960, retrata o cotidiano de miséria, violência e marginalização presentes na vida da escritora, cuja voz se configura como a da moradora de um lugar à margem, a favela, a partir do qual ela faz a leitura da cidade onde mora: “[...] eu classifico São Paulo assim: o Palácio, é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam os lixos”. 

O lugar de fala da autora, entendidos como tal a condição feminina, as características étnicas e o espaço social que habita constituem eixos que nos permitem, enquanto leitores, refletir sobre as funções transformadoras da escrita e leitura na sua vida paupérrima. Ela coloca no papel diariamente, de 15 de julho de 1955 a 1º de janeiro de 1960, com algumas interrupções, seus dramas, raivas, tormentos, frustrações, indignação, inconformismo e angústias, a maior delas, o grande risco de não conseguir alimentar-se e aos filhos. Ao retratar a miséria em grau máximo em que vive, e vivem os outros favelados, a autora torna-se sujeito de si mesma. 

Presa a uma rotina marcada pela obrigatoriedade de ações que a exaurem, marca os relatos com repetições, inclusive de frases. A descrição dos fatos forma fragmentos que batem sempre na mesma tecla: levantar, buscar água na bica, voltar para casa, cuidar dos filhos, sair para a rua, catar papel, vendê-los num depósito. E usar o parco dinheiro que obtém para comprar comida, em geral pão, arroz, feijão, gordura. Quando dá, junta a esse pacote um pedaço de sabão para lavar as roupas e o barraco. Muitas vezes Quarto de despejo lembra um livrinho de contabilidade onde a autora registra o dinheiro que recebe depois de levar a um depósito os materiais recicláveis recolhidos nas ruas. O pouco que ganha e como é gasto ficam anotados.

As repetições, que seriam um recurso estilístico se bem usadas, da forma como são colocadas poderiam cansar o leitor. E isso, em certa altura, incomoda a autora, que escreve em dia frio de junho: “[...] vocês já sabem que eu vou carregar água todos os dias. Agora vou mudar o início da narrativa diurna, isto é, o que ocorre comigo durante o dia”.  Passa então a usar uma frase enxuta, “fiz meus deveres”, quando começa a recolher mentalmente e transferir para as páginas os vestígios de seu dia a serem conhecidos por seu futuro leitor. 

Nos muitos cadernos que formarão o livro, o racismo é frequentemente trazido à tona, por vezes de forma irônica, como em 13 de maio de 1958:  “Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a liberdade dos escravos (...) que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam felizes.” Mas, passadas algumas horas, ela esclarece que não podendo sair para catar papéis, não teria comida na manhã seguinte: “E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutei contra a escravidão atual – a fome!” 

A crítica social e a política, a questão do gênero e as denúncias de discriminação social e racial alimentam a escrita da autora que recorta um contexto de hiper marginalização. Ela sente o preconceito de que é alvo por ser mulher, negra, favelada, catadora de papel, mãe solteira. Mas a leitura e a escrita a distinguem e ela tem consciência de sua singularidade no ambiente da favela. Ao refutar um pedido de casamento, reflete com lucidez surpreendente: “O senhor Manuel apareceu dizendo que quer casar-se comigo. Mas eu não quero porque já estou na maturidade. E depois, o homem não há de gostar de uma mulher que não pode passar sem ler. E que levanta para escrever. E que deita com lápis e papel debaixo do travesseiro. Por isso é que eu prefiro viver só para o meu ideal”.

Mas que ideal seria esse? Ela já o havia anunciado logo nas primeiras páginas: “todos têm um ideal. O meu é gostar de ler”. De fato, a leitura está sempre presente no seu cotidiano. É a salvação nos longos dias em que a chuva a impede de sair para catar papel: evitando pensar na fome dos filhos, debruça-se sobre um livro. Gostando de ler, para nas bancas de jornais para conferir manchetes; lê notícias para vizinhas; aprende palavras novas que inclui em seu vocabulário, como o recorrente verbo “abluir” em lugar de lavar o rosto, e o substantivo “leito”, que elege em lugar de cama. Lê para se acalmar quando está ansiosa. Lê para se distanciar quando está preocupada. Mas depois de receber alimentos de um doador, e matar sua fome e a das crianças, anota: “o nervoso que eu sentia ausentou-se. Aproveitei a minha calma para escrever.” Era um outro tipo de alimento, a escrita.

A autora do diário, para quem “o livro é a melhor invenção do homem”, responde aos que a criticam: “tem muitas pessoas aqui na favela que diz que eu quero ser muita coisa porque não bebo pinga [...] Eu não bebo porque não gosto, e acabou-se. Eu prefiro empregar o meu dinheiro em livros do que no álcool”. Nessa anotação só aparentemente singela desvela-se uma declaração de amor à literatura, pois ao associar a leitura à embriaguez, a escritora revela que seu vício lhe permite embriagar-se também, mas de outra forma.  Ao ler ela sonha com outros lugares, mesas fartas, pessoas gentis. E a leitura, sabe-se, fornece elementos para a escrita. Quando a ambas se vincula o exercício do imaginário, surge o texto literário.  O resultado dessa associação tríplice encontra-se poeticamente manuscrita numa das páginas do diário:

“Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes brilhantes. Que a minha vista circula no jardim, e eu contemplo as flores de todas as qualidades (...) Eu preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela.”

Enquanto escreve e lê sua própria escrita, Carolina se imagina em outra dimensão e cria um mundo próprio, rota de fuga do lugar preto onde mora- a favela que lhe causa desconforto tão opressivo que, mesmo estando ali há cinco anos, nunca a considerou familiar. Há sempre aquele estranhamento de quem não reconhece como seu o espaço que habita, pois o considera apenas lugar de passagem.  Nos dias em que a hostilidade dos moradores se intensifica contra ela e seus filhos, recorre à escrita como forma de desabafo e, ao mesmo tempo, como ela própria define, um jeito de dominar seus impulsos. Caderno e lápis são instrumentos utilizados para internalizar as injúrias sofridas e continuar sobrevivendo naquele universo marcado pelo analfabetismo, onde os moradores acham inconcebível um escritor favelado. Mais preconceito. 

 O diário termina no primeiro dia de 1960, com a retomada de única frase: “Levantei às cinco horas e fui carregar água”. O círculo se fecha. A rotina interminável é retomada.

Na apresentação que fez à primeira edição do livro, o jornalista Audálio Dantas, mentor intelectual de Maria Carolina de Jesus, escreveu:

“Carolina Maria de Jesus entende muito de miséria. Há muito tempo. Como ninguém dizia nada, ela resolveu dizer. E foi só achar um caderno ainda com folhas em branco e começar a contar. Transformou-se em voz de protesto. E há muitos anos grita bem alto, em seus cadernos, gritos de todos os dias. Os seus gritos e os gritos de outros, em diário (...) Histórias de miséria grande há em quantidade nos cadernos de Carolina. De tudo quanto é cristão jogado na favela, no Quarto de Despejo. A humanidade pequenina que se agita sob tetos de tábua e zinco e lata.” 

O livro foi traduzido para quatorze idiomas. 

As denúncias que a Autora grita em Quarto de Despejo continuam reais no Brasil, seis décadas depois.  Para os que não têm medo de realidade, aconselho a leitura. Os quartos de despejo em nosso país já não se restringem a favelas, atualmente estão replicados em praças e ruas de muitas cidades.  

Post Scriptum

1.Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento (MG) e passou por Franca, na década de 40, onde trabalhou como doméstica, daqui seguindo com seus pais para Conquista.

2.Sua filha Vera Eunice, que povoa o tempo todo Quarto de Despejo, esteve na cidade, no último março, em evento promovido pela AFL.

3.Carolina Maria de Jesus é patrona da cadeira nº 7 da Academia Francana de Letras, ocupada por Tânia Mara Pinto de Souza. 

4.“A senhora, sim, é uma escritora”- frase de Clarice Lispector, quando apresentada a Carolina Maria de Jesus pelo jornalista Audálio Dantas

5.Além de Quarto de Despejo, Maria Carolina de Jesus publicou Casa de Alvenaria, poemas e composições. Diário de Bitita, onde narra o tempo que viveu em Franca, é publicação póstuma, de 1986.

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

1 COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.

  • rosa maria batista sousa
    01/07/2023
    hoje ouvi o que Sergio Mouro pronunciou em um video , ele disse que nos brasileiros nao devemos aceitar que os politicos continue roubando o dinheiro dos trabalhadores, e depois lendo esta postagem do gcn, sobre o livro quarto de despejo onde a autora fala da falta de recursos dos pobres desde a decada de 50, quando os politicos nao faziam nada para melhorar a vida dos pobres. passaram-se 70 anos desde 1950, carolina e passara outros 70 anos com os politicos gastando o dinheiro do trabalhador se nao corrermos atras. maria carolina autora do livro disse que ficou doente, correu atras e nao recebeu ajuda do governo. hoje uma amiga me disse que fez uma cirurgia no ombro com dor depois de ficar na fila 5 anos. se ela fosse idosa teria morrido durante este tempo, entao cade o diheiro dos impostos dos trabalhadores para financiar a saude.? Os politicos estao gastando tudo, e se nao corrermos atras vamos ficar como a venezuela