NOSSAS LETRAS

O Imperador da Língua Portuguesa

Quem entra no santuário de Santo Antônio em Franca pode ver à esquerda do altar principal mural que mostra o padroeiro pregando aos peixes. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 17/06/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Quem entra no santuário de Santo Antônio em Franca pode ver à esquerda do altar principal grande mural que mostra o padroeiro pregando aos peixes. Antônio de Lisboa em Portugal e de Pádua no Brasil, o célebre orador tem seu aparelho fonador exposto como relíquia no santuário da cidade italiana de Padova, à qual acorrem milhares de fiéis ao longo do ano e especialmente na data de nascimento do patrono, 13 de junho.  

A biografia impressiona. Ele nasceu em Lisboa, em 1195, numa família de escrivães que serviam à Corte. Fez os primeiros estudos com brilhantismo e se tornou agostiniano ainda muito jovem. Um encontro com Francisco de Assis o impactou tanto que ele se filiou à ordem franciscana, ainda em implantação. Viveu apenas 36 anos, transitou entre Portugal e Itália, protagonizou milagres para alguns e apenas lendas para outros. O quadro que mencionei é quase réplica da tela de Juan Carreño de Miranda (1614-1685), entre os grandes nomes do barroco espanhol. A pintura fixa o capítulo de um enredo.  

Conta-se que Antônio falava em Rimini (cidade litorânea do que ainda viria a ser o território italiano) a um grupo de ateus, tentando convertê-los ao cristianismo. Entretanto, sendo desconsiderado e ironizado afastou-se e buscou uma praia do Adriático, conclamando os peixes a ouvi-lo. Foi com espanto que os presentes viram assomar à superfície peixes de vários tamanhos, nadando de um lado para outro à procura de seus semelhantes para com eles se juntarem. E assim o fazendo, agruparam-se por espécie e colocaram a cabeça para fora da água a fim de ouvir melhor o pregador. 

Cerca de cinco séculos depois, outro Antônio, de sobrenome Vieira, também pregador, igualmente de origem portuguesa, mas pertencente a outra ordem religiosa, a dos jesuítas, tomou a narrativa popular como tema para uma de suas mais célebres peças literárias, o “Sermão de Santo Antônio aos Peixes”, proferido no dia 13 de junho de 1661, no Maranhão. Os dois Antônios estavam separados por quinhentos anos, mas unidos por uma nacionalidade, a lusitana; um talento, a oratória; e uma causa maior, o cristianismo.

Lisboeta, Antônio Vieira veio ainda criança para o Brasil com a família que estava a serviço da Corte. O ano era 1618.  Aluno mediano, reza a lenda que sua inteligência se expandiu depois de ter o adolescente ouvido “dentro da cabeça” um grande estalo, o que ensejou a criação em nosso idioma da expressão “estalo de Vieira’’ para expressar algum súbito descortino, o que modernamente chamamos insight.  Feitos os estudos regulares, ingressou na Ordem de Jesus, em Salvador, e se tornou professor de retórica. Talvez por ser neto de africana, desde cedo manifestou interesse pela diversidade humana, por hábitos diferentes e línguas estrangeiras. Em trabalho missionário durante oito anos no Pará e Maranhão aprendeu sete idiomas indígenas e ficou conhecido junto das tribos como “Pai Grande”, por defender os índios de maus tratos aos quais eram submetidos pelos colonos portugueses. 

O “Sermão de Santo Antônio aos Peixes” é perfeita expressão barroca, onde mediante argumentação poderosa e belas imagens de potente plasticidade, o autor condena de forma enfática a escravização do índio. Não estava só: algumas décadas antes, do outro lado Atlântico, o ensaísta francês Montaigne tinha se manifestado de forma semelhante. Ao mesmo tempo em que denuncia as barbáries praticadas contra os verdeiros donos da terra, Vieira constrói com estilo de beleza inquestionável uma grande alegoria sobre a alma humana, seus vícios e virtudes. 

Numa época em que os pregadores concentravam em si todas as atenções e os sermões tinham peso na sociedade para a qual eram produzidos, Antônio Vieira demonstrou muita coragem ao contrariar interesses de poderosos. Enfrentou com galhardia alguns processos e precisou ir a Roma defender-se junto ao Vaticano. Afrontou a Coroa com a condenação da crueldade dos donos de capitanias e por conta disso foi perseguido. Mas historiadores e biógrafos garantem que ele se manteve sempre íntegro, notabilizando-se pela capacidade retórica, a arte do convencimento, e uma energia incomum na defesa da liberdade e dignidade dos nativos. Como se pode ver, a maneira de tratar o indígena no Brasil foi desde o início perversa, entranhando raízes profundas na cultura brasileira.   

Por conta do “Sermão de Santo Antônio aos Peixes”, e de outros onde defendeu também judeus perseguidos, Antônio Vieira foi banido do Maranhão em 1661. Fixou-se então na Bahia e fez algumas viagens diplomáticas à Europa. Retornou de vez ao nosso país no final da vida, para ordenar, editar e publicar seus 200 sermões e outras peças literárias. Morreu em Salvador, num dia de junho, 17, aos 89 anos.  

Neste mês de coincidências, que celebra algumas datas referentes à nossa cultura, uma delas o dia 10 dedicado à Língua Portuguesa, falou-se na mídia e nas redes sociais sobre Luís de Camões e Fernando Pessoa. Nada vi sobre o Padre Vieira, a quem o magnífico poeta de “Mensagem” chamou, com justiça e conhecimento de causa, “Imperador da Língua Portuguesa”.

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1 COMENTÁRIOS

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  • Paulo Rubens Gimenes
    17/06/2023
    A leitura dos textos de Dona Sônia são fonte de prazer e aprendizado. Grato