NOSSAS LETRAS

As coisas-que-não-têm-fim

Diferente das finitas letras do alfabeto, consoantes e vogais que rapidamente decorávamos em coro, os números eram in-fi-ni-tos. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 10/06/2023 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN

Da primeira vez que o assunto me deixou inquieta eu devia ter sete anos, idade em que fui alfabetizada. Ao nos ensinar a escrever os números de zero a dez, a professora Maria Meneghetti, terna criatura a quem amávamos e respeitávamos com a mesma intensidade, colocava o sinal de reticências para nos explicar que sempre seria possível acrescentar mais uma unidade. Acredito que minha mente não conseguia lidar com a ideia de que não havia ponto final para os números, como existia para frases do tipo “O boi baba na bacia”. Diferente das finitas letras do alfabeto, consoantes e vogais que rapidamente decorávamos em coro, os números eram in-fi-ni-tos. Essa palavra me pegou, ficou me cutucando de formas diversas por anos a fio. Passei a imaginar milhões, bilhões, trilhões, quatrilhões. Com o Tio Patinhas aprendi a palavra quinquilhões, que era a quantia em moedas que ele possuía, na véspera de juntar mais algumas ao cofre-caixa-forte que nunca iria parar de somar, pois o personagem era sovina demais.

Depois, no ginásio, o professor Pedro Nunes Rocha clareou um pouquinho nossa capacidade de entender o que seria o infinito ao nos falar de exemplo proposto por um matemático alemão chamado David Hilbert, que tinha morrido antes que a geração baby boomer colocasse a cara pra fora. Chamava-se, o exemplo, “Hotel de Hilbert”, um lugar de infinitos quartos que nunca estava lotado, admitindo sempre novos hóspedes. Como assim?! Claro que seria impossível na vida real; mas o gênio usou sua extraordinária imaginação para explicar aos menos dotados de QI, o conceito de coisas-que-não-tinham-fim.

Eis a história. Chega ao tal hotel um novo hóspede procurando vaga. Para encontrar essa vaga, o gerente pede que o hóspede do quarto 1 se mude para o quarto 2, que o hóspede do quarto 2 se mude para o quarto 3, e assim por diante. Pensando dessa maneira, a mesma quantidade de hóspedes que ocupava os quartos do hotel lotado passa a ocupar os quartos de número 2 em diante, sem que ninguém fique desalojado, pois o quarto número 1 é liberado para o novo hóspede. Mesmo que chegassem 1.000 novos hóspedes o gerente do Hotel de Hilbert poderia hospedá-los sem ninguém ficar de fora.

Pois não é que reencontrei o Hotel de Hilbert logo no início do documentário “Uma Viagem ao Infinito” que a Netflix estreou em setembro e só consegui ver na semana passada? Escrito e roteirizado por Jonathan Halperin e Alex Ricciardi, o novo Stephen Hawking, o filme mostra, em menos de duas horas, depoimentos e explicações de nomes reconhecidos da cosmologia, matemática e astrofísica. Os ilustres homens da Ciência nos apresentam teorias, possibilidades e muitas perguntas sem resposta sobre o infinito, o universo e a vida.

Se o filme começa com uma simples definição do que é o infinito representado por números, termina numa discussão filosófica sobre o sentido da vida, a origem do universo e um sentimento provavelmente partilhado pelos que já o assistiram: nós, humanos, somos absolutamente insignificantes diante da imensidão e complexidade disso tudo que provavelmente chegará ao fim daqui a 100 bilhões de anos. Há tempo para nos prepararmos.

No momento, o maior desafio dos astrofísicos é descobrir a natureza da “matéria escura” que está presente em cada recanto do universo, em 80% do total da massa das galáxias. O problema é que essa matéria, que em inglês é nomeada dark matter, não pode ser vista. A razão da invisibilidade é que ela não emite radiação em nenhuma parte do espectro eletromagnético, mas é influenciada pela gravidade. Os cientistas não sabem ao certo, ainda, o que ela é, mas sabem o que não é, porque observaram como ela se comporta em relação a outros materiais. “Nós precisamos saber e nós iremos saber”, mandou escrever em sua lápide David Hilbert. 

Como todo mundo sabe, o universo tal qual nós o conhecemos se originou em uma explosão há 13,8 bilhões de anos, e desde então as frações resultantes têm se separado. Especialistas discutiram por décadas se o universo continuaria se expandindo para sempre ou se algum dia entraria novamente em destruição. Essa dúvida chegou ao fim em 1998, quando cientistas descobriram que a expansão cósmica estava se acelerando impulsionada por uma forma antigravitacional que faz parte do tecido do espaço-tempo: a tal a matéria escura, que não é o buraco negro mas tem a ver com ele. 

Quanto maior o universo fica, mais a matéria escura o separa. Essa força tem uma notável semelhança com a constante cosmológica, uma repulsão cósmica que Einstein havia proposto como fator de correção em suas equações para explicar por qual razão o universo ainda não havia colapsado. Mais tarde, ele rejeitou a explicação como um erro. Denis Overbye, do The New York Times, comentando o documentário, escreveu: “A constante cosmológica, no entanto, recusou-se a morrer e agora ameaça destruir o universo”. Bem-humorado, o jornalista.

De certeza o que temos é o seguinte: se a matéria escura prevalecer, as galáxias distantes acabarão se afastando tão rapidamente que não as veremos mais. Quanto mais tempo passar, menos saberemos sobre o universo. As estrelas morrerão. Outras não nascerão. Matéria e energia serão sugadas. No nosso sistema, o Sol acabará com os oceanos e depois morrerá queimando a Terra e o que restar dela. O que estará pensando o último homem?-  pergunta Overbye. E eu penso naquele último humano sobre a face da Terra, descrito por Mary Shelley em 1826 no romance apocalíptico.

As notícias não são boas para os pósteros. Mas o documentário as torna mais digeríveis aos contemporâneos, seja pela forma estética como são apresentadas, seja pelo tom didático conferido à narração. Quando o relato chega ao the end, espectadores percebem que o infinito pode receber várias denominações, inclusive Deus. E que pode até ser finito. Mas então, o que haverá depois dele?

Até agora só compreendemos do universo uma parte ínfima, mesmo com nossos 86 bilhões de neurônios. A consciência disso deve nos despertar o sentimento da humildade: somos aquele o rato mostrado num desenho animado antes dos créditos finais do documentário. O roedor se esforça para ler um livro de física quântica que está virado de cabeça para baixo.

Estamos nos alfabetizando. Não sabemos se ou quando concluiremos a cartilha. Ainda no pré, aproveitemos o momento, que é o que temos. E continuemos a contemplar a Lua e as estrelas nessas bonitas noites que antecedem o inverno no hemisfério sul.

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