NOSSAS LETRAS

O poeta griot no seu sarau

A poesia de Carlos de Assumpção, pelo caráter sonoro e reivindicatório, é perfeita para os saraus. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 27/05/2023 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN

Ricardo Benichio

Quando Carlos de Assumpção começou a cursar Português/Francês na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Franca, depois Unesp, tinha quarenta anos, o dobro da idade dos alunos, todos ali por volta dos dezoito anos, como era o meu caso. No entanto, mal sabíamos que aquele homem alto e altivo já tinha uma história de que se orgulhar. Havia recebido na década anterior, em São Paulo, o título de Personalidade Negra, conferido pela Associação Cultural do Negro, no transcurso do 70° aniversário da Abolição. Com certeza os professores Alfredo Palermo, João Alves Pereira Penha e Yara Frateschi Vieira conheciam o currículo de poeta contestador e cidadão consciente, pois o tratavam com deferência que a nós, alunos comuns, não era dispensada. O discreto Carlos nada nos contava sobre seus êxitos, que eram então reconhecidos além fronteiras da nossa cidade.

Ele não era francano; aliás, como metade da nossa turma. Natural de Tietê, fora transferido para Rifaina, onde lecionava numa escola primária, e depois para Franca. Aqui formou-se em Letras e depois em Direito, nunca tendo abandonado o magistério, onde fez carreira como professor competente e inspirador, especialmente junto a alunos do ensino que hoje se chama médio e na época de recém-formados era conhecido por ginasial e colegial. Nas horas em que não estava lecionando, sempre em carga máxima, escrevia para a Revista Literária Veredas e dois suplementos: o Arte Agora e o Cultural do Diário Oficial do Estado. Foi um dos primeiros nomes escolhidos para integrar a Academia Francana de Letras.

As atividades lhe consumiam grande parte do tempo, mas ele se disciplinava para participar intensamente da cena cultural, fosse escrevendo, lendo, coordenando um grupo chamado Canto e Verso, agitando a Semana da Arte ou criando o coral Afro-Francano. Em todos esses eventos sua voz se elevava denunciando a discriminação sofrida pela população negra.

Apesar de toda essa trajetória, só em 1982, aos 55 anos, estimulado pelo amigo, professor e escritor Luiz Cruz de Oliveira, publicou o primeiro livro, Protesto. Nele estão reunidos seus poemas mais conhecidos. Seis anos depois, no Centenário da Abolição, saiu uma segunda edição, com apresentação de Henrique Alves e prefácio de Aristides Barbosa. Em 2000 aparece Quilombo; em 2009, Tambores da noite; em 2020, Não pararei de gritar – primoroso trabalho editorial da Companhia das Letras. Protesto, premiado em diversos concursos de Poesia Falada, tornou-se um símbolo para as reivindicações dos intelectuais negros do país. Está presente em várias antologias. Foi traduzido para o inglês, francês e alemão. Sua poesia encontra-se também no CD Quilombo de Palavras, de 1998, produção em parceria com o poeta Cuti. Mais recentemente o documentário Carlos de Assumpção: Protesto, com roteiro e direção do professor e pesquisador Alberto Pucheu, da UFRJ, trouxe a público sua vida e obra.

Recentemente, tive o privilégio de estar com Carlos de Assumpção três vezes. Primeiro, por ocasião da mediação do presidente da AFL, José Lourenço de Andrade, que explanou a respeito de Casa sobre areia, autoria do escritor francano Antônio Constantino. Depois, no dia seguinte, por telefone, nos lembramos com saudades dos tempos de faculdade, de colegas queridos que já se foram, de outros que seguem atuantes. De forma não intencional eu estava me preparando para o terceiro encontro, na noite de 23 de maio, quando estive no belíssimo sarau que celebrou os 96 anos do mestre, poeta, griot. Foi uma festa pungente, espetacular, icônica, abençoada pelos afetos que pareciam palpáveis.

Griots, para algumas culturas africanas, são aqueles que contam histórias, narram os acontecimentos de um povo, passando as tradições para as gerações futuras. É pois um status e um lugar de fala, que Carlos de Assumpção ocupa com dignidade e coragem, mobilizando público cada vez maior e mais preocupado com o combate ao racismo, à discriminação, injustiça, violência. E, óbvio, inspirando todos com a afirmação de sua negritude.

A poesia de Carlos de Assumpção, pelo caráter sonoro e reivindicatório, é perfeita para os saraus, que fazem contraponto à voz dos que por muito tempo entenderam poesia como versos elitizados, limitados a círculos acadêmicos. O sarau e seu primo mais novo, o slam, tornaram-se ferramenta de empoderamento individual, de superação de barreiras, de organização política coletiva. Ambos nasceram e vingaram diante da ausência de espaço para exposição e compartilhamento de temas sociais recorrentes como o racismo. Na falta, os seres humanos criam. 

No portal de literatura afro-brasileira lemos que o poeta Carlos de Assumpção “constrói um poderoso elo entre a ancestralidade africana, com sua tradição de oralidade, e as formas modernas de expressão da consciência e da estética negras presentes na diáspora africana nas Américas. Seus versos retomam o legado milenar da poesia oral para tocar nas angústias do existir e do ser negros numa sociedade marcada pela herança de mais de trezentos anos de escravização”. Acredito que foram estes os sentimentos que mobilizaram também a alma de dois poetas angolanos e duas poetas cubanas presentes no sarau. Eles declamaram lindamente em suas línguas nativas e conferiram ainda mais emoção ao momento que congregava tantas pessoas amigas em uníssono pensamento. Aquele que, como disse o poeta em entrevista no número 7 de Cadernos Negros, nos lembra:  “um dia seremos realmente todos irmãos. Contudo, a concretização desse anseio, desse sonho de muitos, dependerá da luta de todos os homens...”

Enquanto este dia não chega, a voz enérgica do querido griot poeta continuará ecoando como na noite mágica do seu sarau natalício: um alerta para aqueles que ainda insistem em silenciar os que reivindicam liberdade, igualdade, dignidade: “Eu quero o sol que é de todos// Quero a vida que é de todos/ Ou alcanço tudo o que eu quero/Ou gritarei a noite inteira/ Como gritam os vulcões/ Como gritam os vendavais/Como grita o mar/ E nem a morte terá força/ Para me fazer calar”.

Que rufem os tambores!

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