NOSSAS LETRAS

Vem buscar-me que ainda sou teu

Por Sonia Machiavelli | 20/05/2023 | Tempo de leitura: 4 min
especial para o GCN

Quando menina, ouvia rádio em casa, como toda minha geração. Enquanto não inventavam televisão, ele nos informava sobre o que acontecia no país e no mundo. A Rádio Nacional do Rio de Janeiro alcançava o país inteiro, exibia novelas, tinha programas de culinária, transmitia futebol. O radioteatro expandia nossa imaginação com peças de renome. Ouvintes recebiam todas as notícias importantes pelo Repórter Esso, “testemunha ocular da história” até ser tutelado pela ditadura que se instalou em março de 1964.

Os programas de auditório levavam aos quatro cantos do Brasil vozes femininas famosas como as de Marlene, Emilinha, Ângela Maria. E a masculina de Vicente Celestino, cuja potência vocal levou a gravadora Odeon a buscar no exterior engenheiro de som para criar microfone especial. Outros tempos. Antiquíssimos para quem tenha menos de 50 anos. Incompreensíveis para quem acha que antes do rock e da bossa nova havia um limbo na música brasileira. Minha memória resiste. Aleluia.

Vicente Celestino, cantor, compositor e letrista, passou por todas as fases e modismos, mantendo-se fiel ao estilo melodramático que o consagrou. Só abriu exceção para gravar as imortais Luar do Sertão (Catulo da Paixão Cearense) e Se Todos Fossem Iguais a Você ( Vinicius/ Jobim). Ao todo foram 137 discos com 265 canções.

O reconhecimento artístico pode ser avaliado quando se sabe que teve canções gravadas por Marisa Monte e...  Caetano Veloso! Pois então! E eu nem sabia que “Coração Materno”, que tanto me impressionou na infância, a ponto de me provocar lágrimas e insônia, está incluída no icônico Tropicália, de 1968. Foi ao tomar conhecimento disso, bem recentemente, que senti vontade de resgatar a letra. Ei-la. (E viva o Google):

“Disse um campônio a sua amada/Minha idolatrada, diga o que quer/Por ti vou matar, vou roubar/Embora tristezas me causes, mulher/Provar quero eu que te quero/Venero teus olhos, teu porte, teu ser/ Mas diga tua ordem, espero/Por ti não importa, matar ou morrer// E ela disse ao campônio, a brincar:/ ‘Se é verdade tua louca paixão/Partes já e pra mim vá buscar/De tua mãe inteiro o coração’// E a correr o campônio partiu/Como um raio na estrada sumiu/E sua amada qual louca ficou/A chorar na estrada tombou//Chega à choupana o campônio e encontra/ A mãezinha ajoelhada a rezar/ Rasga-lhe o peito o demônio/Tombando a velhinha aos pés do altar//Tira do peito sangrando da velha mãezinha/O pobre coração e volta a correr proclamando: ’Vitória, vitória tem minha paixão’ // Mas em meio da estrada caiu/ Na queda uma perna partiu/E à distância saltou-lhe da mão/Sobre a terra, o pobre coração// Nesse instante uma voz ecoou: “Magoou-se, pobre filho meu?/Vem buscar-me, filho, que aqui estou/Vem buscar-me, que ainda sou teu!”

Na voz de barítono de Celestino, os versos lembram ária de ópera. Na de Caetano soam mais amenos, talvez andróginos, mas igualmente pungentes. A letra descreve de forma muito plástica um matricídio. É fato que a saga, inspirada em contos medievais, é mais plausível a uma tragédia grega que à vida real. A contemporaneidade já nos ensinou que nem todas as mães amam seus filhos incondicionalmente e os perdoam ad aeternum.  Disso nos dão conta história, literatura, psicologia, e os fatos registrados no cotidiano. Há até Medeias das quais temos notícias de vez em quando na mídia. Mas são exceções, acredito. Em geral o amor das mães é sentimento poderoso que pode ajudar a mover para frente a vida dos filhos. Elas merecem reverências e não apenas no Dia das Mães, onde o marketing incentiva maciçamente o consumo, estimulando a compra de presentes.

 Foi por conta da música citada, e da data comemorada no domingo passado, que meu pensamento andou voando para o passado. Mas também  para o presente, na direção das mães que sofrem por conta de filhos que habitam um lugar do qual é difícil sair e se chama Ingratidão. Elas talvez cheguem à casa dos milhares nos países onde Ana Jarvis conseguiu inspirar seu ideal de homenagem- aliás, mal compreendido até hoje. Neste contexto, “Vem buscar-me que ainda sou teu” não é apenas um verso que coloca ponto final ao enredo imaginado para expressar o amor materno. Ele traduz um desejo profundo de proximidade, um pedido de resgate- assim acredito.

Já o crítico de arte  Diogo Araújo, em ensaio cujo título  é  “A canção ‘Coração materno”, escreve:  “A imagem mais bela da letra talvez seja a dos versos da penúltima estrofe: “E à distância saltou-lhe da mão/Sobre a terra o pobre coração.” Esta pode ser a assunção poética de que o coração da mãe, como relíquia, deve ser, para a liberdade subjetiva, justamente o bem a ser realmente apropriado e destruído. O coração materno é o centro da resplandecência inocente, fabular, imobilizadora. Cair no mundo e arrancar o coração da mãe são aqui sinônimos. O sujeito cai no mundo, o coração da mãe cai, pobre, mas sobre toda a terra.”

Achei triste. Mas profundo. E freudiano.

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1 COMENTÁRIOS

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  • Irineu Paganucci
    22/05/2023
    Parabéns por ter encontrado esse tesouro e com essa história.