NOSSAS LETRAS

A natureza da mordida

Assim são os livros conhecidos como universais: mostram emoções em todas as suas variantes; humanizam um pouco mais a espécie à qual pertencemos; Leia o artigo de Sonia Machiavelli

Por Sonia Machiavelli | 06/05/2023 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN

Tinha assistido na noite anterior à entrevista que Carla Madeira concedera aos jornalistas da TV Cultura, quando amiga me ligou indagando se eu já havia lido algum livro da escritora. Respondi que não, mas estava doida pra ler “Tudo é rio,” o primeiro dos três lançamentos. Então ela me aconselhou a começar pelo segundo, “A natureza da mordida”, título instigante que havia adquirido e estava me enviando. Assim, à tarde eu o recebi.

Li de enfiada e logo nas primeiras páginas fiquei cativa do enredo, da estrutura, do estilo. Tinha sido fisgada. Aquele livro pertencia à família dos que nos seduzem, avaliei. A gente começa a ler e só para a fim de cumprir obrigações e compromissos inadiáveis. Bom demais tudo o que me oferecia:  intriga, personagens, profundidade, escrita encantatória. Assim são os livros conhecidos como universais: mostram emoções em todas as suas variantes; humanizam um pouco mais a espécie à qual pertencemos; deixam-nos menos arrogantes ao mostrar a finitude dos seres e a impossibilidade de ver tudo o tempo todo. E torna patente que há mistérios em nossa vida que não são desvendados.

A história começa com as duas protagonistas se encontrando pela primeira vez num pequeno sebo/cafeteria que anteriormente acolhera jornais, revistas e gibis. Neste espaço emblemático, Biá, idosa um tanto excêntrica, frequentadora assídua, vê a jovem Olívia ocupando mesa sobre a qual achava possuir exclusividade. Aproxima-se para cobrar o lugar que julga ser seu e encontra a moça ruiva escrevendo sem pausas e com ar de tristeza. Surpreendida pelo refinado humor da que chega, a que ali já estava se deixa envolver. Plantada a semente da empatia no solo da literatura, ambas vão se descobrindo em encontros dominicais. A tragédia humana alimenta as conversas; as dores mais antigas se desvelam junto às novas; cada encontro é celebrado por ambas.

Nos doze primeiros encontros o leitor entra em contato com uma história de muitas lacunas. Mas a partir do 13º, a saga começa a ganhar fluxo, a vida de Olívia vem à tona e a de Biá também. Graças ao talento da autora na elaboração do enredo e na construção dos personagens, o leitor vai percebendo como as fronteiras entre o bem e o mal nunca estão bem delineadas. Na ficção, como na realidade, elas se desestabilizam o tempo todo, impedindo julgamentos maniqueístas.

Poderia dizer que é um livro sobre mulheres, maternidades, gerações; a amizade; a força feminina no enfrentamento dos percalços da existência; preconceitos, rupturas; inveja, ciúme, raiva; envelhecimento e demência; desespero diante do que causou sofrimento sem que se conheça a sua gênese. Em sua riqueza, “A natureza da mordida” abarca tudo isso e mais: é um romance marcado pelo amor à literatura. Vejamos.

Emma, o nome oficial de Biá, homenageia Jane Austen ao evocar o romance homônimo da inglesa. Da mesma forma são referenciais: Viagem aos seios de Duília, de Aníbal Machado; Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Márquez; A Náusea, de Jean Paul Sartre; Antes do nome, de Adélia Prado; Crime e Castigo, de Dostoiévski; Guerra e Paz, de Léon Tolstói; Os Miseráveis, de Victor Hugo; A Terceira Margem do Rio, de Guimarães Rosa; A paixão segundo GH, de Clarice Lispector, e muitos outros autores e suas obras primas. As deparar-se com eles, mesclados ao texto, sem aspas ou qualquer indicação em pé de página, é possível que o leitor sinta-se tão surpreendido como eu me senti.  Como a protagonista, mulher culta e ética, poderia fazer aquilo, não dar autoria ao que citava?

A resposta chega num adendo final que tem por título outra das “Anotações de Biá”. Reunida em oito páginas encontra-se a extensa lista de créditos. Considerei o recurso muito original. Generosa com a personagem e o leitor, a escritora registra: “Em uma de suas anotações, Biá diz: ‘Algumas coisas que li não se contentaram com minha memória, caíram no meu sistema digestivo, e eu as incorporei como a um bom bife. A ponto de não saber mais se são minhas as palavras que digo ou se deveria viver entre aspas’. Para que essas citações, ora literais, ora livres, fossem de fato incorporadas à fala da personagem, optei por não sinalizá-las ao longo da narrativa. Faço aqui as devidas menções. Vamos aos bifes!”

Parte integrante das falas de Biá, essas vozes em segundo plano dentro dos seus pensamentos, oriundas dos muitos livros que ela havia lido em sua vida, representam linda homenagem da ficcionista à força da literatura que permanece alimentando leitores através das vozes que falam ao coração e são acolhidas para sempre na memória, mesmo quando esta começa a claudicar.

(Como não incluir entre escritores prodigiosos a própria Carla Madeira, cujas frases curtas, lapidadas como joias, esculpidas com engenho, hipnotizam com suas profundas verdades?)

Ouvi dizer que uma leitora sentiu vontade de marcar cada frase, mas não o fez porque deduziu que grifaria o livro inteiro em suas 238 páginas. Foi também o que me sucedeu, na ânsia por introjetar ao menos alguns vislumbres dessa visão do ser humano, nas suas incoerências e fragilidades, mas também na coragem e resiliência diante do que não tem explicação na vida, representada por boca velha e desdentada, que nos morde de forma deselegante, nos joga de um lado para outro, nos machuca e mastiga e um dia nos engole. Uma metáfora vigorosa para o exercício de viver.

Não devemos desistir, isso seria imoral, nos lembrou um dia Clarice Lispector. Nem devemos parar de caminhar, ainda que não saibamos em qual direção, aconselhou o místico Rumi. Devemos ir sempre na direção contrária à aconselhada pelo medo, falou um monge cujo nome ainda vou relembrar.  Foi assim, também pelas entrelinhas, que li esse livro que ampliou meu orgulho por ter em nosso país Carla Madeira escrevendo em língua portuguesa, e de forma original, verdades perenes que já estão sendo traduzidas em novos idiomas, do outro lado do mundo. A literatura brasileira está vivíssima.

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