Que situação! Há muito tempo, nem existia celular ainda, recebi chamada de advogada de Brasília que pediu licença, mas queria me fazer algumas perguntas de foro particular. Queria responder? Dava licença para ela me perguntar? Achei que tivesse alguma relação com algum texto meu ou talvez alguma questão ligada à empresa da família. Não. Era sobre mim e minhas atividades durante a revolução, nos idos 70. Disse a ela que já havia passado muito tempo, que eu estava em outra realidade, não era mais a mesma estudante de sangue nos olhos do passado. Que nem me lembrava mais de detalhes que me sufocaram outrora. Mas ela insistiu. Afirmou saber da minha detenção, dos momentos desagradáveis do interrogatório a que fui submetida naquela época. Que eu era a única mulher da região a ser submetida àquele constrangimento. Persuasiva e insistente, a doutora. E, então, disse a palavra que seduziu tanta gente na época e que ainda beneficia alguns ditos cidadãos brasileiros: indenização e salário mensal por todos os anos da minha vida, que poderia beneficiar minha família também, caso eu batesse com as dez. Citou nomes famosos, cantores e escritores conhecidos. Disse a ela que lugar de passado é no passado, que eu tinha outra vida e não precisava de indenização. Convincente, persuasiva, disse que era para eu tomar tempo para aquela decisão, que ela sabia difícil. Para eu conversar com a família.
Lembro-me que estávamos em horário de almoço, que o telefone ficava perto da sala onde estavam todos. Voltei para a mesa, alguém limpou a garganta: estavam ligados à estranha conversa. Contei-lhes a proposta da doutora Dulce, era esse o nome da advogada. Após breve silêncio, meu marido disse que eu era livre para decidir. Disse para eu pensar se havido sido como obrigada a participar do movimento. Não houve coação? Ou por livre e espontânea vontade? Os filhos mais velhos, adolescentes ainda, questionaram: era dinheiro público. O que o cidadão trabalhador tinha a ver com meus sonhos de guerrilheira e transformadora da ordem constituída? Se eu tinha sido livre para ir em busca de algum sonho que não havia sido transformado em realidade, o que os outros brasileiros tinham com isso? Escolha livre é assim: você faz sua opção e segue o caminho. Deu certo, bem. Não deu, ninguém tem que pagar por ela. Não é justo.
Doutora Dulce ainda esperançosa – acho que ela seria também beneficiada - chamou no dia seguinte. Ouviu que não, obrigada. Loquaz e argumentativa, citou nomes, disse que eu me arrependeria de não aceitar a indenização e o salário revolução, benefício que eu merecia, garantiu. Não quis, obrigada. E continuei a dormir em paz. Acho que não fui a única: muita gente ainda deve pensar assim.
Recentemente tomei conhecimento de que o novo presidente comprou móveis de cama, mesa a preços que coraram as pessoas comuns que veem seus semelhantes em situação de fome. Vi o presidente em viagem ao exterior se esquivar de perguntas embaraçosas, dizendo não entendê-las, ainda que feitas no nosso idioma. Vi a mulher infantil do presidente saltitar de alegria por viajar no avião presidencial, que nem a mulher do Macron e a do Obama. Vi o mesmo presidente oferecer cargo regiamente recompensado a várias pessoas incapazes, uma em particularmente ridícula, meme das redes sociais. Vejo o novo presidente do Brasil entregar nossa riqueza a estrangeiros e aumentar nossa despesa interna com o inchaço descabido de ministérios, com cartões corporativos. Vejo-o impedindo as obras rio São Francisco, não permitindo que ofereça água para os nordestinos.
Recentemente percebi - e tive medo de pensar nisso - que o salário que eu receberia não faria diferença no imenso poço de iniquidades financeiras às quais está submetido o povo brasileiro. E ainda querem nos calar com censura.
Meu Deus! Que país é esse?
Lúcia Helena Maniglia Brigagão é publicitária e escritora.
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Comentários
2 Comentários
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João Castro 06/05/2023é puro classismo introjetando. FHC teve até foto dentro de banheira em suíte de hotel gringo para estampar matéria elogiosa. A patrulha do gasto se dá porque Lula é um estranho no ninho. Não tem o pedigree. Não está em sua posição natural, que seria o pau-de-arara.
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ANTOIO MILHIM DAVID 04/05/2023A ESCRITORA LUCIA BRIGAGÃO É DE UMA SENSIBILIDADE INCRÍVEL, COM ESTE BELO \"POEMA\" VERGONHA. MERECE APLAUSOS DE PÉ. PARABÉNS!