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NOSSAS LETRAS
Chatice
Ou perdemos o humor ou ficamos intolerantes e impacientes. Leia o artigo de Lúcia Brigagão.
Por Lúcia Brigagão | 22/04/2023 | Tempo de leitura: 3 min
Especial para o GCN
“Nem sempre quem cala, consente. E, muitas vezes, a causa do silêncio é a preguiça de discutir com gente chata.” Comunicação e, talvez, em consequência, o nível de entendimento entre as pessoas estão pela boa. Nunca imaginei chegar o tempo de tomar cuidado para verbalizar qualquer observação sobre a aparência física, peculiaridade, particularidade, preferência, singularidade, características de diferenciação, qualidade, idiossincrasia e atributo do próximo – aqueles traços que dão individualidade, que tornam único e original cada indivíduo.
Lembra do “Nossa! Como você está bonita!” Não pode mais. Qualquer cumprimento ou elogio, seja do homem para mulher, ou vice-versa; de homem para homem e de mulher para mulher, pode ser considerado assédio. Dar abraço apertado? Insinuação! Suspiro dobrado? Conduta abusiva.
Convivi com bullying. Meu irmão nasceu com defeito que lhe valeu pela vida o apelido de “Boca Torta”. Já cheguei em casa com olho roxo, sangue no canto direito do lábio porque apanhei - mas também bati - de alguém da gangue da Saldanha Marinho que o chamava pelo apelido. Ele nem se tocava. Também, pudera! Punha no chinelo a molecada feia, esquelética, defeituosa da cabeça, sem graça e que não tinha a bola de cobertão, ou capotão, fetiche na época do futebol de várzea. Alguém enchia o saco dele? Simples assim: ele saía do jogo. Pegava a bola e ia embora. Impávido e colossal. E não era por causa do apelido, não. Era porque ele se chateava mesmo com a chatice dos outros. Já tive amigos identificados por nome de passarinho – caso tivessem cabelo ruivo, por exemplo. Magros e compridos eram o “Pau de Virar Tripa”. Meu pai tinha até quadrinha, no tempo que era jogador de futebol e defendia seu “parmerinha”: “Ticobau, manga foguinho, tripa seca não dá nó.” Meu avô materno, de acordo com seu registro no Tiro de Guerra, é de cor parda. Duas primas próximas formavam o Duo Brasil Moreno, eufemismo para mulatas, que fizeram sucesso na Record cantando música sertaneja. Tive tios mais claros, outros bem escuros. Não sei que cor lhes atribuiriam hoje. Flicts é que não seria.
Ferrugem era o nome artístico de antigo menino prodígio da TV brasileira. Ele tinha sardas, pareciam mesmo marcas deixadas pela oxidação do ferro. O apelido dele seria inadmissível hoje. Mas, naquele tempo, até jogadores de futebol eram identificados por peculiaridades físicas: Big Big, Caixa D’Água, Cabeção; Jorge Árvore, Cheiroso, Pelotão; os inseparáveis Polenguinho e Molho Shoyo – companheiros de campo e trabalho, amigos e camaradas, para quem a diferença do tom de pele não pesava. Tinha o Vampeta: feio que só, mistura de Vampiro com Capeta. O companheiro de pernas compridas do meu pai era o Cegonha; aquele que andava saltitando, agitado, o Perereca; o chefe posudo, vaidoso, bonitão: Boi. O Coronel era o mais sisudo e altivo dos colegas de banco. Meu pai carregou pela vida o apelido de Bezerro porque tinha o péssimo hábito de tirar o leite dos latões que os fazendeiros deixavam na antiga barbearia de vovô e colocar água para nivelar. Passou o tempo, meu irmão caçula, que vivia grudado nele passou a ser o Bezerrinho e ele foi elevado para Bezerrão. Tudo isso, antes do “politicamente correto” e suas variações.
Ou perdemos o humor ou ficamos intolerantes e impacientes. Por mim, o tia, ou tio, antes do nome próprio da gente é o mais estigmático, ofensivo, depreciativo e chato de todos os apelidos.
Tá difícil conviver. Esse patrulhamento está uma chatice.
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CESAR AUGUSTO DE ALMEIDA
27/04/2023Ailton Costa
23/04/2023