NOSSAS LETRAS

A mochila e a vida

Despertar entre crianças e adolescentes o gosto pela literatura, por livros de autores antigos ou contemporâneos, tornou-se desafiante. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 22/04/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Foi no começo da semana passada que minha sobrinha Talita chegou em casa ainda mantendo no rosto um ar de estranhamento. Vinha de uma das escolas onde leciona língua portuguesa e se empenha para levar aos alunos o gosto pela leitura. Uma tarefa muito difícil em nossa época. Despertar entre crianças e adolescentes o gosto pela literatura, por livros de autores antigos ou contemporâneos, tornou-se desafiante para pais e mestres. A recente pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” mostra como avançamos pouco nos últimos anos. Tivemos o fator Covid, é verdade, mas sempre me pareceu que nossa reclusão teria levado a uma procura maior por livros. Parece que não foi bem assim. Em contrapartida, bombaram e continuam bombando o Facebook que já ficou para trás quando o objetivo é a economia de palavras; o Twitter de máximos 280 caracteres; o Youtube de milhões de imagens; o Tik Tok rapidíssimo; o Instagram com a vida editada; o Whatsapp, substituto avassalador do telefone. Etc.

Não sou contra nada disso, já vou informando antes que me chamem de passadista ou coisa pior. Considero-os grandes acréscimos, não sei ainda se amplamente civilizatórios. Acho maravilhoso como em apenas uma década a comunicação expandiu a ponto de podermos fazer de qualquer lugar do planeta perfeitas chamadas de vídeo: quando criança, tal fato seria da ordem da ficção científica. Os posts que mostram paisagens do outro lado do planeta, como as maravilhosas cerejeiras do Japão, suavizam em mim a frustração de nunca os ter visitado. O acesso quase infinito ao banco de dados do Google amplia as fronteiras da minha curiosidade, deslocadas cada vez mais à frente, porque o conhecimento de um fato leva a outro numa teclada de segundos; isso antes demandaria semanas de pesquisa.

Mas como tudo que está debaixo do céu, a nova realidade tem seu lado solar e seus aspectos sombrios. Os avanços da tecnologia trouxeram consigo o maravilhamento da nova forma de comunicação; mas também o aspecto viciante. Assistir ao suceder de imagens hipnotizadoras é fácil e prazeroso. Diante da lei do menor esforço, quem pretende ir na direção oposta? Creio que este é um dos fatores que têm afastado os alfabetizados dos livros. Foi por aí que começou e fluiu minha conversa com Talita.

Disse ela que durante um mês seus alunos leram a biografia de Malala, a menina paquistanesa vítima da violência da polícia do seu país só por insistir em ir à escola. No Paquistão, é proibido às mulheres ler e escrever. Com receio de que os alunos reproduzissem apenas o resumo do Google, Talita fez como a maioria de seus colegas:  promoveu leitura em sala de aula. Depois, para avaliar entendimento de texto e compreensão da narrativa, resolveu dramatizar alguns episódios, aproveitando sua veia artística. 

Certos fatos suscitavam reações mais veementes da classe, outros eram pontuados pelo silêncio da indiferença. Até que chegou o ponto nevrálgico da biografia, quando Malala, junto a outras meninas, estando na carroceria de um caminhão, a caminho da escola, foi atingida pela bala de um policial. O ferimento grave quase a matou.

A professora, que havia ensaiado sua fala e dedicado horas para conferir uma emoção que contagiasse os alunos, se surpreendeu com a ausência de expressão de sentimentos deles. Mas continuou. A cena seguinte era aquela onde o pai de Malala, um professor, chega ao hospital pouco depois da ambulância. Ele leva numa das mãos um sapato da menina e na outra uma mochila. Detalhista, a autora do texto registrou que nesta estava impressa a face de Harry Potter, herói mundialmente conhecido por conta da série da inglesa J.K.Rowling.

Foi aí que aconteceu o inusitado. Os “OhOhOhs” que povoavam a expectativa da professora na cena da tentativa de homicídio, e a tinham frustrado, irromperam então em uníssono: “Nossa!”; “Perder uma mochila dessas!”; “Coitada da Malala!”; “Ai, eu fiquei com dó.”  A educadora parou sua leitura dramatizada, esperou que os alunos se acalmassem e falou: “Não estou entendendo... Vocês pareciam até entediados no trecho em que Malala quase perdeu a vida... E agora, na iminência de que a mochila houvesse se perdido, vocês ficam ouriçados!”

Uma aluna, como se lhe respondendo, disse que aquela mochila com a cara do Harry Potter era linda, mas muito cara, nunca poderia ter uma igual. Outras frases eram sinônimas dessa.

A mestra lhes perguntou se não sentiam o peso da violência que havia vitimado Malala. Alguns, como se falando pelo todo, alegaram que ela “nem tinha morrido”; que “todo dia alguém é baleado”; e sim, a tal mochila era sonho de consumo de todos.

Ao ouvir esse relato, confesso que me assustei. Pensei que não é só o vício em jogos e redes sociais que está subtraindo às novas gerações um tempo necessário à reflexão. Milhões de jovens estão sendo apequenados pela incapacidade de valorizar a vida num mundo onde a violência se tornou banal. Por aí se entende, pelo menos em parte, porque destinam à literatura, que leva à transcendência, um olhar de desdém.

Ler implica esforço, pede concentração, demanda compreender relações de causa e efeito, solicita o estabelecimento de conexões entre a mente do leitor e a dos personagens (e autores). Mas é a literatura que, pelo seu caráter sonhante, tem capacidade de levar quem lê para plataformas diferentes, aquelas que podem nos humanizar neste momento em que a vida precisa ser concebida como valor máximo e uma mochila ser reduzida às suas reais dimensões de objeto.

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2 COMENTÁRIOS

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  • Ervécia
    22/04/2023
    Triste, Sonia!
  • JUSCILENE DE LIMA
    22/04/2023
    Amei seu texto