Foi no começo da semana passada que minha sobrinha Talita chegou em casa ainda mantendo no rosto um ar de estranhamento. Vinha de uma das escolas onde leciona língua portuguesa e se empenha para levar aos alunos o gosto pela leitura. Uma tarefa muito difícil em nossa época. Despertar entre crianças e adolescentes o gosto pela literatura, por livros de autores antigos ou contemporâneos, tornou-se desafiante para pais e mestres. A recente pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” mostra como avançamos pouco nos últimos anos. Tivemos o fator Covid, é verdade, mas sempre me pareceu que nossa reclusão teria levado a uma procura maior por livros. Parece que não foi bem assim. Em contrapartida, bombaram e continuam bombando o Facebook que já ficou para trás quando o objetivo é a economia de palavras; o Twitter de máximos 280 caracteres; o Youtube de milhões de imagens; o Tik Tok rapidíssimo; o Instagram com a vida editada; o Whatsapp, substituto avassalador do telefone. Etc.
Não sou contra nada disso, já vou informando antes que me chamem de passadista ou coisa pior. Considero-os grandes acréscimos, não sei ainda se amplamente civilizatórios. Acho maravilhoso como em apenas uma década a comunicação expandiu a ponto de podermos fazer de qualquer lugar do planeta perfeitas chamadas de vídeo: quando criança, tal fato seria da ordem da ficção científica. Os posts que mostram paisagens do outro lado do planeta, como as maravilhosas cerejeiras do Japão, suavizam em mim a frustração de nunca os ter visitado. O acesso quase infinito ao banco de dados do Google amplia as fronteiras da minha curiosidade, deslocadas cada vez mais à frente, porque o conhecimento de um fato leva a outro numa teclada de segundos; isso antes demandaria semanas de pesquisa.
Mas como tudo que está debaixo do céu, a nova realidade tem seu lado solar e seus aspectos sombrios. Os avanços da tecnologia trouxeram consigo o maravilhamento da nova forma de comunicação; mas também o aspecto viciante. Assistir ao suceder de imagens hipnotizadoras é fácil e prazeroso. Diante da lei do menor esforço, quem pretende ir na direção oposta? Creio que este é um dos fatores que têm afastado os alfabetizados dos livros. Foi por aí que começou e fluiu minha conversa com Talita.
Disse ela que durante um mês seus alunos leram a biografia de Malala, a menina paquistanesa vítima da violência da polícia do seu país só por insistir em ir à escola. No Paquistão, é proibido às mulheres ler e escrever. Com receio de que os alunos reproduzissem apenas o resumo do Google, Talita fez como a maioria de seus colegas: promoveu leitura em sala de aula. Depois, para avaliar entendimento de texto e compreensão da narrativa, resolveu dramatizar alguns episódios, aproveitando sua veia artística.
Certos fatos suscitavam reações mais veementes da classe, outros eram pontuados pelo silêncio da indiferença. Até que chegou o ponto nevrálgico da biografia, quando Malala, junto a outras meninas, estando na carroceria de um caminhão, a caminho da escola, foi atingida pela bala de um policial. O ferimento grave quase a matou.
A professora, que havia ensaiado sua fala e dedicado horas para conferir uma emoção que contagiasse os alunos, se surpreendeu com a ausência de expressão de sentimentos deles. Mas continuou. A cena seguinte era aquela onde o pai de Malala, um professor, chega ao hospital pouco depois da ambulância. Ele leva numa das mãos um sapato da menina e na outra uma mochila. Detalhista, a autora do texto registrou que nesta estava impressa a face de Harry Potter, herói mundialmente conhecido por conta da série da inglesa J.K.Rowling.
Foi aí que aconteceu o inusitado. Os “OhOhOhs” que povoavam a expectativa da professora na cena da tentativa de homicídio, e a tinham frustrado, irromperam então em uníssono: “Nossa!”; “Perder uma mochila dessas!”; “Coitada da Malala!”; “Ai, eu fiquei com dó.” A educadora parou sua leitura dramatizada, esperou que os alunos se acalmassem e falou: “Não estou entendendo... Vocês pareciam até entediados no trecho em que Malala quase perdeu a vida... E agora, na iminência de que a mochila houvesse se perdido, vocês ficam ouriçados!”
Uma aluna, como se lhe respondendo, disse que aquela mochila com a cara do Harry Potter era linda, mas muito cara, nunca poderia ter uma igual. Outras frases eram sinônimas dessa.
A mestra lhes perguntou se não sentiam o peso da violência que havia vitimado Malala. Alguns, como se falando pelo todo, alegaram que ela “nem tinha morrido”; que “todo dia alguém é baleado”; e sim, a tal mochila era sonho de consumo de todos.
Ao ouvir esse relato, confesso que me assustei. Pensei que não é só o vício em jogos e redes sociais que está subtraindo às novas gerações um tempo necessário à reflexão. Milhões de jovens estão sendo apequenados pela incapacidade de valorizar a vida num mundo onde a violência se tornou banal. Por aí se entende, pelo menos em parte, porque destinam à literatura, que leva à transcendência, um olhar de desdém.
Ler implica esforço, pede concentração, demanda compreender relações de causa e efeito, solicita o estabelecimento de conexões entre a mente do leitor e a dos personagens (e autores). Mas é a literatura que, pelo seu caráter sonhante, tem capacidade de levar quem lê para plataformas diferentes, aquelas que podem nos humanizar neste momento em que a vida precisa ser concebida como valor máximo e uma mochila ser reduzida às suas reais dimensões de objeto.
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Comentários
2 Comentários
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Ervécia 22/04/2023Triste, Sonia! -
JUSCILENE DE LIMA 22/04/2023Amei seu texto