NOSSAS LETRAS

Visita

A foto registra meu momento de solidão diante do cenário e palco de tantas alegrias e momentos importantes. Leia a crônica de Lúcia Brigagão.

Por Lúcia Brigagão | 15/04/2023 | Tempo de leitura: 3 min
Especial para o GCN

Sentamos em volta da mesa da cozinha, local e palco das maiores decisões de qualquer família de origem italiana. Conversávamos. Temas e discussões se sucediam. O assunto morte veio à baila. Justificável. Era o início da tragédia social e universal da epidemia da covid que certamente viveríamos, mas de dimensões e características ainda ignotas.

Certeza, estávamos sob a égide do medo. Havíamos recém-encerrado viagem para o Atacama. Ao sairmos das geleiras, soubemos que os vôos - todos - da Argentina para o Brasil, haviam sido cancelados. Nosso plano inicial era dormir em Buenos Aires, onde eu comemoraria meu aniversário, em hotel palco dos meus mais doces e burgueses sonhos. Que nada. Ofereceram-nos – era pegar ou largar – albergue que não tinha pão, leite ou chá para nos oferecer.  Dormimos com fome, limpinhos e confortavelmente: grande alento. No dia seguinte, nova tentativa de volta. Fomos para o aeroporto e demos com a visão caótica daquele espaço, mais cheio e bagunçado que na tarde anterior, quando chegamos. Liga para o Brasil, para as agências de viagem, conseguimos voltar para casa. Sãos, salvos e estressados.

Naquela noite, a conversa na cozinha girou em torno de nefandas possibilidades, cada tópico iniciado com a terrível e temida expressão “e se?”. E se estivéssemos contaminados? E se um de nós tivesse apresentado sintomas da doença antes da viagem de volta, ainda lá? E se tivéssemos elevação de temperatura corporal, sem qualquer relação com a pandemia? E se um de nós tivesse morrido? Foi aí que surgiu a ideia de cremação. Explicitei meu desejo e o jovem advogado amigo presente alertou que deveria deixar pronto documento escrito, devidamente assinado e registrado no cartório, caso contrário eu iria para baixo da terra virar comida de lagartos, como temia. Os mais jovens disseram que era cedo para pensar nisso. Os mais velhos correram atrás da legalização.

Oito meses depois, o chefe da casa veio a óbito. Conforme seu desejo, foi cremado e suas cinzas, entregues dentro de caixa. O que fazer delas? Guardá-las seria mórbido. Descartá-las, impensável. Decidimos dividi-las em pacotinhos e espalhá-los por locais que tivessem algum significado na vida dele. Parte foi para o rancho, no Estreito, palco de inúmeros e memoráveis encontros com amigos. Outro punhado foi espalhado pelo jardim da casa que construímos, local onde nossos filhos cresceram, passaram a infância, juventude, se casaram e se reproduziram. A terceira, levamos para o Araxá, para o Grande Hotel, cenário de incontáveis, centenas de temporadas e finais de semana, divididos ao longo de cinquenta anos de casamento e celebrações, inclusive a da comemoração das nossas Bodas de Esmeralda. Fomos lá. A cerimônia fúnebre começou. No fundo do hotel, à borda do lago, de início, resgatamos passagens alegres transcorridas naquele cenário. Paisagem belíssima, também choramos, rezamos, resgatamos momentos que julgávamos esquecidos. Foi emocionante. Aí rezamos e entregamos as cinzas às águas, à terra. O ar as levou e nossos corações arderam ao lembrar cenas antológicas vividas e protagonizadas naqueles espaços por todos nós, sob a expressiva presença do doce e leve chefe da família, apropriadamente chamado de “Lord” por amigos e conhecidos.

Fui recentemente ao Araxá, refiz várias vezes o percurso a pé, ao redor do lago. Fui sozinha, acho eu que para me encontrar a sós com meu companheiro de tantos e felizes anos. Deixei-me embalar pelas lembranças e após o café, numa manhã, decidi visitar o local onde deixamos, quero crer que o coração dele.

A foto registra meu momento de solidão diante do cenário e palco de tantas alegrias e momentos importantes. Momento paparazzi, foi tirada por jovem, carinhoso e doce casal para quem confidenciara, na noite anterior, durante o jantar, que pela manhã visitaria meu marido.

Fale com o GCN/Sampi! Tem alguma sugestão de pauta ou quer apontar uma correção?
Clique aqui e fale com nossos repórteres.

Receba as notícias mais relevantes de Franca e região direto no seu WhatsApp
Participe da Comunidade

COMENTÁRIOS

A responsabilidade pelos comentários é exclusiva dos respectivos autores. Por isso, os leitores e usuários desse canal encontram-se sujeitos às condições de uso do portal de internet do Portal SAMPI e se comprometem a respeitar o código de Conduta On-line do SAMPI.