NOSSAS LETRAS

80 anos de um clássico

“O Pequeno Príncipe” usa várias parábolas para tratar de temas perenes como a necessidade de criar laços porque somos seres sociais. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 15/04/2023 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN

“O Pequeno Príncipe”, do francês Antoine Saint-Éxupéry, é o terceiro livro mais traduzido do mundo, ficando atrás apenas da Bíblia e do Alcorão: esse fato já o distingue. Chegam a mais de trezentas as traduções, incluindo dialetos raros como o alur no Congo e o toba do norte argentino: é outro dado que revela seu alcance. Na China, até o ano passado contavam-se setenta e duas edições diferentes e milhões de leitores: nos números orientais, o reconhecimento do valor filosófico. E ainda dizem, esnobes e pseudointelectuais, que é “livro de miss”. Duplamente pejorativo e preconceituoso.

Apesar da nacionalidade do autor, o livro foi publicado primeiro nos EUA, em 6 de abril de 1943. Completou portanto oitenta anos. No Brasil, o título apareceu tímido em 1954, com tradução de Dom Marcos Barbosa. Outros tradutores se sucederam, inclusive os poetas Mário Quintana e Ferreira Gullar. Chegamos agora à celebração dos 80 anos, com excelentes edições. Conhecido em todo o planeta como escritor, Saint-Exupéry, nascido em 1900 numa família aristocrática, começou sua vida adulta como aviador que ajudaria a implantar rotas de correio aéreo no norte da África. Aliás, para escrever o livro que o imortalizaria, inspirou-se em fato biográfico. Em 1935, durante tentativa de quebrar o recorde de voo mais rápido entre Paris e Dakar, caiu no Saara. Junto com seu copiloto sobreviveu por quatro dias, experiência que o marcou pelo resto da sua curta vida. Salvaram-se ambos por terem sido encontrados por um homem de tribo nômade. Tal vivência foi a semente que germinou uma obra só aparentemente dedicada ao público infantil. Pela riqueza das metáforas, narrativa poética e inerência filosófica, “O Pequeno Príncipe” conseguiu atingir diferentes faixas etárias. Pode (e deve) ser lido dos oito aos oitenta, sem prejuízo de sentido. É uma das belezas da maioria dos clássicos.

Saint-Éxupéry possuía grande talento para criar frases de fácil entendimento às quais conferia sentidos profundos; e que nunca se tornaram anacrônicas porque fazem referência a sentimentos humanos, à beleza, à diversidade dos seres, ao valor inegociável da vida, a temas eternos.

Quem nunca ouviu falar que “Tu te tornas responsável por aquilo que cativas”? Ou então que “O essencial é invisível aos olhos, e só se vê bem com o coração”?  Das que eu sei de cor, cito: ”O que torna belo um deserto é que ele esconde um poço em algum lugar. É necessário que eu suporte duas ou três larvas se quiser conhecer as borboletas. Num mundo que se faz deserto, temos sede de encontrar um amigo. É loucura jogar fora todas as chances de ser feliz porque uma tentativa não deu certo. É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar. É bem mais difícil julgar a si mesmo que julgar os outros.” A minha preferida é bastante replicada nas redes sociais, sem que lhe seja atribuída a autoria: “Aqueles que passam por nós não vão sós, não nos deixam sós; deixam um pouco de si, levam um pouco de nós.”

Exilado no Estados Unidos, onde se encontrava desde o começo da Segunda Guerra, deixou este país em 1943 para combater as tropas nazistas na Europa. Nesta altura já tinha publicado, além de dezenas de crônicas em jornais norte-americanos, o conto “O Aviador”; os romances “Correio do Sul” e “Terra dos Homens”; os fragmentos que intitulou “Voo Noturno”; e um texto curto e contundente sobre as atrocidades da Guerra chamado “Cartas a um refém”. Um mês antes de partir, entregou o manuscrito e as ilustrações de “O Pequeno Príncipe” para sua namorada, a jornalista Sylvia Hamilton, a fim de que ela os negociasse com alguma editora. A Morgan Library & Museum, de Nova York, os comprou, com direito de exclusividade por 25 anos. Assim, o escritor conseguiu ter o livro em mãos pouco antes de voar para uma base africana e lutar pela França contra a ocupação alemã. Tinha completado 44 anos quando, no dia 31 de julho, o avião que pilotava caiu nas águas do Mediterrâneo, a 200 km de Marselha. O corpo desapareceu, como o do Pequeno Príncipe no final da história homônima. Restos do avião encontrados apenas em 2004 estão num museu em Paris.

A narrativa do livro em foco é construída sobre um encontro inusitado: o de um aviador perdido no deserto e um frágil menino de cabelos dourados. A criança conta ao adulto que até há pouco tempo morava em minúsculo planeta, o asteroide B-612, habitado também por uma rosa exigente, dois vulcões- um ativo e outro extinto, e alguns pés de baobá. Os diálogos que ambos travam introduzem no enredo outros personagens simbólicos que os traços do escritor/ilustrador tornaram imortais.  Pela ordem:  rosa, raposa, carneiro, caixa, elefante, jiboia, serpente, rei, bêbado, homem de negócios, acendedor de lampiões, geógrafo, astrônomo, homem vaidoso.

Considerando que no conjunto das imagens às quais os ficcionistas recorrem, a parábola é história simples para explicar  verdade complexa, “O Pequeno Príncipe” usa várias parábolas para tratar de temas perenes como a necessidade de criar laços porque somos seres sociais; manter um bom nível de tolerância porque isso faz parte da lida com a frustração; entender as contradições porque elas são  inerentes à nossa humanidade; desenvolver responsabilidade pelos afetos despertados;  cultivar a criança interior; compreender que há diferença entre valor e preço; não julgar pela aparência.  Etc.

A leitura de uma criança pode desvelar algumas ou todas as propostas do autor. De acordo com a faixa etária, e de forma homeopática, ela alçará voos cada vez mais altos. A leitura de um adulto também vai variar segundo idade, conhecimento, sabedoria.

Já pensei que a metáfora maior a abranger as menores seria a lastimável perda da inocência e da fantasia. Porque é certo, desde que nascem os humanos crescem acumulando informações e experiências, enquanto desalojam de seu interior a criança que foram. Hoje reúno a este entendimento, outro, que penso ser mais amplo. Acho que Saint-Éxupéry convida o leitor a mergulhar tanto na sintaxe coloquial, como nos seres e coisas instigantes que desenhou, para que, pelo intertexto onde a literatura pulsa, ouça um conselho, que é o mesmo do oráculo de Delfos: “Conhece-te a ti mesmo.”

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1 COMENTÁRIOS

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  • Ervécia Rosa
    22/04/2023
    Excelente !