NOSSAS LETRAS

Anos 90

Assassinato de professor era roteiro de filme de terror. Tudo mudou? Mudou. Infelizmente. Leia o artigo de Lúcia Brigagão.

Por Lúcia Brigagão | 08/04/2023 | Tempo de leitura: 3 min
Especial para o GCN

Não era mais como quando eu fiz o colegial no mesmo IETC – Instituto de Educação Torquato Caleiro. Não tinha mais dona Branca, professora de História, nem sr. Pedro, que judiava da gente com sua matemática. Ou sr. Nicanor que nos iniciou no Inglês. Não tinha dr. Palermo, professor de Português ou dr. Valeriano, que dava aulas de Latim. Nem dona Maria Inês, de Geografia, que quase me reprovou porque eu não fazia diferença entre cúmulos, cirros e nimbos: eram todas nuvens, ora essa. Anos depois, quando a encontrava, tinha vontade de pedir sua bênção.

Quando dona Meire se aposentou, disseram-me, ela teria me indicado para substituí-la no ofício. Fiquei entre surpresa e incrédula: eu não era a mais brilhante ex-aluna, muito menos pertencia ao grupo dos cfds. Tinha fama de bagunceira e irreverente. Os ajudantes da ordem escolar me conheciam: eu tinha todos os carimbos que controlavam a presença dos alunos nos recintos da escola através das cadernetas escolares: Domingo, Feriado, Ausente, Presente que eram entregues no início das aulas e devolvidas devidamente carimbadas no fim do expediente. Era procurada às escondidas para carimbar cadernetas de eventuais cabuladores de aula. Nossa vida de estudantes não era fácil. Por tais motivos, quando a diretora da escola, naqueles anos 90 me procurou para o processo de substituição da cadeira de Filosofia, passado o aturdimento, a surpresa e o medo da minha própria incompetência, fui atrás dela.

Somos parentes. Ela é filha de tia Maria, irmã de minha avó materna Lila, mas  esse fato nunca me deu vantagem alguma. Pelo contrário, pouca gente sabia do parentesco e ela me apertava enquanto e, talvez, não por isso...  Fui procurá-la. Ela me recebeu sorrindo. Fiquei em dúvida: seria tudo vingança ou armação dela? Ela queria que eu pagasse meus pecados escolares, me colocando na mesma situação? Vieram à lembrança as discussões, os debates em aula. De um lado, meus argumentos atrevidos, de outro a ponderação e o equilíbrio dela.  Vencemos aquela etapa. Seguimos nossos caminhos e, de repente, ali estava eu, diante da sala cheia de alunos com a cabeça cheia de minhocas, como a minha na mesma idade. Seria competente na mesma função dela no apaziguamento dos ânimos atrevidos dos jovens? Era pagar para ver. Aceitei, fui em frente, vivi intensos momentos com aquelas gerações que aceitei orientar.

Nossos encontros eram informais, alegres, havia troca intensa de energia.  Nunca foram desrespeitosos comigo. Nossas relações eram baseadas na hierarquia. Eu imitava meus professores, quando ia dar aula: não usava meias de seda, mas estava sempre com roupas limpas, com calças compridas ou saia de comprimento adequado. Meus colegas de profissão não usavam camisetas amarfanhadas. Nenhum de nós tinha ideologia explicitada num refrão pintado no peito. Não ganhávamos bem: o tempo nababesco de quando professores eram recompensados, havia passado.  Mas tínhamos dignidade. Não admitíamos ser tratados como lixo.  Cenas como a do aluno que se masturbou à vista da classe, sob a mesa da professora e ejaculou em sua perna era impensável. Assassinato de professor era roteiro de filme de terror. Não há exigência do uso de uniforme, identificação dos alunos em cada estabelecimento. Tudo mudou? Mudou. Infelizmente.

Ah! A baixinha do centro da foto sou eu, na porta do IETC. As inscrições na parede, pioraram. Os alunos se tornaram adultos, pais de família, profissionais. Dona Meire se tornou minha amiga, não temos mais formalidades. E os novos tempos, que esperávamos melhores, definitivamente  não aconteceram.

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