NOSSAS LETRAS

Um olhar que desperta o riso

Muitas vezes precisamos escapar e relaxar; fugir ao menos temporariamente de pressões, pesos, espinhos; experimentar o prazer celestial do riso. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 01/04/2023 | Tempo de leitura: 5 min
Especial para o GCN

Vem dos chineses um provérbio pouco conhecido em português: “O tempo que passas rindo é tempo que passas com os deuses”. Dou razão aos orientais. Muitas vezes precisamos escapar e relaxar; fugir ao menos temporariamente de pressões, pesos, espinhos; experimentar o prazer celestial do riso.

Situações que despertam bom humor podem ser propícias à liberação de endorfina, hormônio responsável pela sensação de bem estar, e de serotonina, neurotransmissor que protege o coração. Acho até que o riso seja um mecanismo que o corpo utiliza para nos mantermos vivos apesar de todas as pedras no meio do caminho. Uma estratégia de sobrevivência, como não? Sem tais momentos acho que nossa existência se tornaria ainda mais difícil, pois estaríamos a toda hora com um pé na insanidade.

Estas considerações são um preâmbulo para sugerir aos leitores a série inglesa “O mundo por Philomena Cunk”, que estreou no fim de janeiro na Netflix e foi produzida pela BBC.  Ao assistir, a gente que anda estressada com as loucuras do mundo aplaude e pede bis, pois todos os episódios nos fazem sorrir, rir e gargalhar, não necessariamente não nesta ordem. 

Pelo menos para mim foi impossível manter seriedade diante das perguntas bizarras de uma entrevistadora, a tal Philomena Cunk,  encarregada de colher informações junto a especialistas para a produção de um audiovisual intitulado  “A História do Mundo.” A longa caminhada é sintetizada em cinco episódios e vai desde que o homem saiu da caverna até a contemporaneidade, quando inventa o smartphone.

Este tipo de série foi batizado recentemente como mocumentário. Assim mesmo, com a consoante m. A primeira vez que li esta palavra, achei que havia erro de digitação, com certeza algum descuidado tinha trocado o d pelo m, apesar da distância que ocupam no teclado. Mas quando o termo reapareceu em novos contextos, fui atrás do significado. Descobri que é um tipo de documentário que  faz paródias ou sátiras a partir de fatos reais. Vem da junção das palavras inglesas "mock" (zombaria) + “documentary" (documentário) e tenta levar o espectador a crer que o exibido na tela realmente aconteceu.

Mas então a série inglesa não seria um documentário fake? Não, porque a protagonista realmente visita os lugares que elege para ilustrar cada época, e entrevista especialistas em vários ramos do conhecimento. A presença de autoridades em antropologia, geografia, ciências, matemática, egiptologia, dramaturgia, literatura, pintura e música sustenta a veracidade histórica. Elas dão respostas certas para perguntas erradas, mas são estas que nos fazem rir.  Por outro lado, também não se pode dizer que seja um documentário fidedigno, pois sua primeira intenção não é favorecer conhecimentos e sim zoar com a história e a humanidade.  O humor explode nas perguntas sem pé nem cabeça e nas avaliações de Philomena sobre períodos e personagens. Destaco algumas de suas pérolas.

Caminhando pelas ruínas de um anfiteatro grego e visitando um museu de Atenas, a moça observa bustos de filósofos como Sócrates e Platão e afirma que eles “continuam famosos mesmo não tendo lançado nenhum livro recentemente.” Depois surpreende a Drª Myrtho Hatzmichali com a frase que atribui a Aristóteles: “ Temos de dançar como se ninguém estivesse olhando”. A professora duvida: “Se ele escreveu isso, não sei...”

Tendo andado por vestígios de antiquíssima cidade, talvez das primeiras do mundo, e classificá-los como “um monte decepcionante de pedras e poeira”, ela pergunta ao Prof. Kim Khalili: “Quem inventou a civilização?” Faz-se um minuto de silêncio e ele responde, sério, que “não foi uma pessoa, mas sim o resultado de um processo que aconteceu gradualmente em várias partes do mundo.” Não convencida, ela retruca: “Não teria sido obra de um homem que pretendeu ficar anônimo?”

Ao observar pinturas rupestres numa caverna, e deduzir com seus botões que elas teriam inspirado a criação de HQs, retoma imagens de homens da Idade da Pedra e questiona o Prof. Irving Finkel: “Os antigos tinham as mesmas coisas que nós temos?” Ele, estranhando: “O que, exatamente? Armas, templos, joias?” E ela: “Não. Pés, sobrancelhas, orelhas.” Ele respira antes de dizer: “Sim, todo o conjunto de órgãos externos e internos.” Philomena insiste: “O mesmo número de buracos e tal?”

Em Pompeia, após avaliar o tesouro de informações que as cinzas do Vesúvio sepultaram por séculos, aplica um teste ao Dr. Nigel Spivery e lhe pergunta se os romanos, além de inventarem o concreto e aperfeiçoarem o calendário, teriam também criado a fórmula para clareamento anal.

E por aí ela vai, vestida à moda das apresentadoras da BBC, numa torrente sem fim de indagações excêntricas, cada uma mais inusitada que a outra. Entretanto, algumas vezes elas são capazes de nos fazer questionar fatos que damos por óbvios, como o conceito de liberdade, e outras vezes, pelo viés da ironia, nos induzem a refletir sobre assuntos muito sérios como escravidão, desigualdade social, intolerância religiosa, fanatismo, racismo, machismo, guerras. 

 A protagonista, ativando em nós, público, percepções que variam entre os de moça maluca e criança curiosa, desperta nossas melhores gargalhadas graças ao talento da atriz Diane Morgan, cujo desempenho levou a série a obter uma rara nota dez de todos os críticos que abastecem o conhecido website “Rotten Tomatoes,” agregador de comentários e resenhas sobre filmes e séries. Nem toda unanimidade é burra.

Exemplo do novo gênero, de linguagem marcada não só por humor, mas também por deboche e sarcasmo, elementos desestabilizadores, “O mundo por Philomena Cunk” consegue mostrar, através da justaposição de verdadeiro/falso, a impressionante travessia do homem  através dos milênios, fazendo o espectador rir não apenas do outro, no caso da outra, mas de si mesmo. É lucro, neste nosso tempo de arrogâncias e imitações da realidade.

PS.
1.O homem é o único animal que ri.
2.“Ridendo castigat mores” é frase latina para mostrar que através do riso é possível criticar os costumes.
3. O diretor da série é Charlie Brooker, que conquistou prêmios e público com “Black Mirror”, onde o tema da distorção já estava presente.

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