NOSSAS LETRAS

O Caso Navarro

Publiquei essa história de “terror doméstico” durante a pandemia de covid-19 no meu livro 'Depois eu Conta: Diário dos Miseráveis'. Leia o artigo de Baltazar Gonçalves.

Por Baltazar Gonçalves | 25/03/2023 | Tempo de leitura: 3 min
Especial para o GCN

Publiquei essa história de “terror doméstico” durante a pandemia de covid-19 no meu livro Depois eu Conta: Diário dos Miseráveis. Nós víamos milhares de pessoas morrerem todos os dias, nossos vizinhos contaminados faleceram, também parentes e amigos, e esposas e maridos e padres e professoras e motoristas e empresários, até presidentes de repúblicas e modelos de beleza eterna e atletas olímpicos saudáveis até a contaminação pelo vírus - e a agonia nos envolveu sem exceções.

O que era poesia agora lhes conto, mas aviso: é cena macabra o desfecho pavoroso. Narro apenas a substância, do caldo o resto, coloco moldura no último quadro quando entrei cego nesse átrio, patíbulo tétrico onde o fim trágico de navarro surgiu aos meus olhos entre os raios de uma feroz tempestade e o silêncio opaco do espasmo no fim de um orgasmo.

Não sendo o único miserável desafortunado, mas exemplar digno da maior desgraça, o apátrida cansado de estar no mundo alinhou seu desejo mórbido por companhia ao destino certo de morrer em breve, e desatinado na febre da solidão exata decidiu juntar restos humanos ainda intactos para dar vida autônoma ao quebrado. Navarro sobrepôs o rejeito ao dejeto, deu nova forma ao já disforme: a face visível da humanidade traumatizada. o bruxo sonhou mimese aparelhada, ele comporia um tirésias moderno... bebendo na alquimia de livros proibidos os respingos de sangue e excremento, navarro cortou, amputou, seccionou CABEÇABRAÇOSMÃOSSEIOSPERNASVULVA e um pênis avantajado sem propósito para erguer a seu modo o tal híbrido.

Eis a forma do assombro estampa da nossa espécie: a hedionda mandíbula em metades distintas sobreposta na arcada sem muita ligadura (a superior feminina sem mácula mal encaixada na inferior extraída de um rapaz desdentado), pernas infantis ligadas ao tronco adulto, os cabelos escorriam derretidos na cabeça inchada, hematomas purulentos por toda parte. Eis a forma do assombro na tumba fria mausoléu sombrio que pode ser nossa vida: a criatura acordou com o chamado de navarro: fala! a coisa ergueu-se do silêncio bruto o corpo redivivo e num gesto de demorada agonia abriu um dos olhos, mas o outro permaneceu no escuro profundo: FALA! Eis a forma do assombro: almas perdidas no mesmo fosso, carne podre amarrada por fios de aço, a criatura estava pronta, mãos gélidas palmas em prece e dor, a aberração estava concluída, na boca o bafo de demônios ocultos e na pele seca altar de um deus morto, nessa atmosfera de odor inebriante navarro deu postura ao desfalecido que ali sentado parecia entender: FALA! E como se também pudesse fundir almas, no impasse final dessa gestação errática derradeira e obscura bifurcação da vida o motor da loucura o impelia ao pranto, no entanto o semblante enigma do sonâmbulo continuava impassível, intocável perfeita ferida, composto por   fragmentos e dolorosos lamentos, o autômato borrão disforme era nossa figura: fruto de coito severo sem castigo, fervor lascivo corrompido na origem, eu consumido levitando nesse desaterro sou a mescla de tirésias e sísifo, arremedo da força e ameaça da vontade... a criatura ergueu-se espezinhada e muda... oh língua desgraçada composta de palavras mortas-vivas, como contar o que se deu?

Logo o alquimista percebeu que a língua úbere-aberto na face da criatura era mais uma vala morta do mistério no oculto, por isso fez seu último gesto de puro desespero: mais por constrangimento que por sacrifício, tomou de uma faca o corte que a lâmina tinha e em delírio da própria língua fez o músculo que agora enfia goela abaixo da morta-viva-muda.

Ali os encontrei abraçados, o enigma era agulha fincada no vórtice dos meus olhos: ali os encontrei abrasados, a criatura tomada de inumana piedade amparou o sangue de navarro colando os vãos de suas bocas rasgadas num beijo de vírgulas mal traçadas e tomando o corte da mesma lâmina para voltar a dormir o pulso abriu.

Do que lhes conto parte está no diário, o manuscrito deixado aquela mesa; eu me pergunto se o acontecido pode mesmo ser assim narrado: mas eu juro! juro ter ouvido assombrado a coisa-pessoa singular fragmentada dizer essa palavra antes do seu retorno ao vazio, esta palavra que ainda perfura meu crânio e que por ninguém jamais foi ouvida.

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