NOSSAS LETRAS

Infiltrações

Choveu além da conta neste verão que se foi; ao menos no calendário. A nova estação ainda guarda vestígios de calor e abafamento. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 25/03/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Choveu além da conta neste verão que se foi; ao menos no calendário. A nova estação ainda guarda vestígios de calor e abafamento. Até maio teremos de suportar dias de temperaturas altas em pleno outono.

Tanta água caída do céu aplacou a sede das plantas, encheu rios, tranquilizou agricultores. Entretanto, trouxe consigo também destruição. É sempre assim por aqui, sudeste do Brasil.  Dentre as palavras que mais ouvi desde outubro, “infiltração” ocupou o topo no ranking dos queixumes. As moradas dos humanos, tenham sido construídas no rés do chão ou no alto das torres, sofreram com os aguaceiros. Dia desses uma pessoa exasperada com o problema me perguntou: “Conhece alguma casa ou apartamento desta cidade que não tenha infiltração?”

Então, acho que foi por conta do eco da pergunta, e das circunstâncias incômodas nela contidas, que fui atraída na sexta-feira passada pelo vídeo do professor Aguiar. Ele falava sobre assunto diante do qual geralmente minha atenção se dispersa: con-cre-to. Sim, aquele material composto, constituído por cimento, água, areia e pedra. Aliás, o site desta autoridade no assunto se chama “Causos (sic) Concretos.”

Nos primeiros instantes meus olhos acompanharam o engenheiro sem muito interesse. Porém, quando ele usou a expressão “claustros de cal”, algo dentro de mim se remexeu. Lembrei-me, sei lá por qual razão, de “Inspirações do claustro”, primeiro livro de Junqueira Freire. Poeta ultrarromântico, ele mereceu elogios de Machado de Assis no jornal “Diário do Rio de Janeiro”, em1866, uma década depois de sua morte, aos 23 anos.

O que era claustro, eu sabia: verbete do nosso idioma, designa a galeria coberta e arqueada que forma os quatro lados do pátio interior de um convento ou mosteiro.  Mas o que seriam “claustros de cal”? Abri ouvidos e olhos porque apareceu de repente na tela um edifício magnífico, hoje transformado em mausoléu, o Panteão de Roma, que todo turista tem a obrigação de visitar.

Erguido no reinado do imperador Augusto, ele foi reconstruído por Adriano em 126. Sua planta é circular e o frontão suportado pelo pórtico de enormes colunas coríntias de granito. Quando Bruneleschi foi encarregado de construir o Duomo de Florença, inspirou-se nele, cuja cúpula, nas últimas décadas, levou engenheiros e arquitetos a pesquisas específicas. O que a havia mantido intacta, sem qualquer infiltração, por quase dois mil anos? Aguiar fez um preâmbulo e depois explicou.

Bancado por um consórcio de grandes construtores europeus, um grupo de técnicos descobriu recentemente, depois de anos de estudos, algo muito interessante. No concreto romano entrava um cimento diferente do usado por outros povos. Ele era feito com cinzas de vulcão e cal virgem, muito reativa à água. Durante o processo de endurecimento, sob alta temperatura, essa mistura formava outras substâncias, uma delas um cristal, o tal “claustro de cal”, assim denominado por conta de seu desenho. Aliás, também no nosso cérebro há uma região que recebe este nome por questão de semelhança com o da arquitetura. E para denominar o medo que têm certas pessoas de lugares fechados, os estudiosos da mente e do comportamento humano criaram o substantivo claustrofobia. Vejam só a riqueza desta palavra a povoar quatro áreas do conhecimento: arquitetura, literatura, medicina e psicologia. 

O que tem a ver tudo isso com as infiltrações que tanto aborrecem inquilinos e proprietários? É o seguinte. Os “claustros de cal” presentes no cimento romano da cúpula do Panteão de Roma (e de outros monumentos arquitetônicos do período), quando entram em contato com a água reagem formando uma substância restauradora, impedindo que a infiltração se aprofunde e comprometa a estrutura. É como se fosse célula de um sistema vivo se reparando a si mesma. Achei fantástico.

Desde então ando pensando em outro tipo de infiltração, muito mais prejudicial, traiçoeira e degradante que a física. Falo daquela que silenciosamente penetra em nossa subjetividade, gota a gota, embolorando energias, enevoando percepções, minguando sonhos, minando entusiasmos. Que cristais poderiam agir impedindo que a alegria de viver fosse afogada pela inundação de tristezas? Ainda não encontrei a resposta, mas estou procurando para saber se existe esse tipo de auto reparação e como funciona.

PS
1. Não sei se é fidedigna a história que contou o professor Aguiar para internautas; pode ser factual, mas pode ser apenas narrativa. Posso garantir que não foi brincadeira de primeiro de abril.
2. A dúvida me bateu porque, se não me falha a memória, na cúpula do Panteão de Roma há grande abertura no alto, vista por quem está lá dentro. Mas quem sou eu para confrontar um engenheiro formado pela UFMG?
3. Este “causo concreto”, se non è vero, è bene trovato. E me serviu de inspiração para escrever esta crônica.

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2 COMENTÁRIOS

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  • José Borges da Silva
    30/03/2023
    Excelente crônica, como sempre, Sônia!
  • jaques campos
    25/03/2023
    Pelo que tenho conhecimento, o desafio na construção do Panteon de Roma foi a execução do domo pelas suas dimensões, para que o peso não comprometesse a edificação, o ornamento de caixotões foi escorado no lado de fora por botaréus, e a medida que a obra subia usavam-se camadas mais finas de concreto, e no topo misturou-se cimento com pedra-pomes, rocha de origem vulcânica. Logicamente que os alicerces de formato circular foram reforçados com 4,5m de profundidade e 7,0 de largura.