NOSSAS LETRAS

A dolorosa jornada de um trans

Pessoas que ainda se surpreendem com questões ligadas a gênero, ou pior, homens e mulheres preconceituosos, deveriam assistir a este filme. Leia o artigo de Sonia Machiavelli.

Por Sonia Machiavelli | 11/03/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Neste domingo, quando a atenção dos cinéfilos volta-se para a cerimônia do Oscar, é oportuno lembrar que o cinema europeu se afasta cada vez mais do produzido em Hollywood. Para gostar do primeiro, ou melhor, para reconhecer suas intrínsecas qualidades, o espectador deve estar consciente de que a jornada humana não é a mesma dos super-heróis que comumente arrastam quarteirões nos filmes norte-americanos. A vida da maioria, homens e mulheres comuns, é dura; a realidade, muitas vezes excruciante; o vulto das circunstâncias na melhor das hipóteses empata com o tamanho da coragem de vencê-las; a trajetória de cada ser está marcada por desafios que podem ser superados ou não. É disso que quase sempre tratam os cineastas do quilate do belga Lukas Dhont, que neste 2023 pode levar para casa uma estatueta na categoria Internacional por “Close”, seu segundo filme. Mas é o primeiro, “Girl”, disponibilizado pela Netflix aos seus assinantes, que vou abordar aqui. 

“Girl” mostra com delicadeza mas sem véus o sofrimento de um adolescente trans (Viktor/Lara) que, mesmo contando com apoio de seu pai e suporte médico de equipe especializada, vive angustiado por ter de esperar pela cirurgia libertadora, embora arriscada. Em sua linguagem narrativa o filme se aproxima do documentário, talvez por estar ancorado em fato real, conforme se lê nos créditos. E, poderíamos completar, não apenas no caso individual que serviu de inspiração ao diretor, mas na rotina de tantos e tantas que ora se publicam na mídia, ora sofrem silenciosos como Lara, que busca nas aulas de balé alguma alegria. Entretanto, a linearidade quase inflexível da categoria é só um dos pilares para contar a história.

O outro se encontra na superposição de imagens, no caráter genuíno dos diálogos e nas cenas das aulas de dança onde as ordens emergem na voz da exigente mas amorosa professora: Elévé! Jeté! Plié! A primeira é para erguer-se sobre a ponta, com pernas esticadas e pés planos. A segunda, para saltar puxando o movimento com uma das pernas. A terceira, para juntar os tornozelos, manter as pontas voltadas para lados opostos e dobrar os joelhos. Movimentos básicos, mas difíceis, pedem tempo de exercícios para serem repetidos com exatidão.

Disciplinada e apaixonada pela dança, Lara entrega-se a eles, mas algumas vezes fracassa porque, como diz sua professora, ela “começou mais tarde que as outras meninas.” Esse diálogo entre as duas, na verdade um monólogo, aflora como imagem para o estado emocional da jovem. Ela precisa exercitar especialmente a paciência, virtude de que carece, para esperar que os hormônios funcionem, o corpo esteja em condições perfeitas, a mente equilibrada, as emoções controladas. Só então poderá se submeter à cirurgia que irá lhe conferir a identidade buscada. “Eu só quero ser uma garota”, diz ao pai, que  responde: “É assim que te vejo.”

A vida de Lara se divide entre o pequeno apartamento e a renomada escola de balé, dois espaços fechados. Introvertida, calada, triste, ela  transita de um para outra, sofrendo bullying aqui e ali. Por conta dos esforços na dança, os pés se deformam; os dedos sangram; o sexo, disfarçado pelas camadas de esparadrapo, também fica ferido. Com o avançar do tempo, não vendo aparecer as curvas pelas quais anseia, e que o tratamento com hormônios não consegue antecipar, ela se torna inapetente, emagrece, desmaia durante um ensaio. 

Todos esses eventos são acompanhados muito de perto por nós, que assistimos ao filme. A impressão é a de que invadimos o banheiro onde Lara perde os sentidos; a cozinha onde o pai insiste para que se alimente; o consultório onde é cuidada por especialistas; o assoalho onde se senta para retirar as sapatilhas; o sofá do vizinho onde passa por momento de enorme constrangimento.

Toda essa sensação de aproximação do espectador à intimidade da protagonista deriva da direção, do roteirista, dos atores, e também do trabalho magnífico dos diretores de fotografia e de iluminação, em feliz parceria com o responsável pela trilha sonora. Eles fazem  com que o público não apenas seja testemunha das dores físicas e emocionais do/da adolescente, mas também sofra junto com ele/ela.

Captando a ansiedade de Lara, o psicólogo da equipe médica a aconselha a viver cada dia, não se prendendo apenas ao futuro com que sonha. Mas Lara não consegue, pois parece se sentir lagarta que anseia pela borboleta, como se dentro de um casulo. Sofre demais por não dar conta de aguardar o  fim da metamorfose que lhe conferirá asas com as quais poderá voar, nos palcos inclusive.  Essa incapacidade de esperar mudará os rumos de sua trajetória.

Sobre os atores, há que se destacar Victor Polster no papel de Lara. Também bailarino, ele conquistou pela atuação um prêmio importante na França. Sua entrega como ator à lida dolorosa com o corpo comove em todos os momentos.

Pessoas que ainda se surpreendem com questões ligadas a gênero, ou pior, homens e mulheres preconceituosos, deveriam assistir a este filme. Para que entendam a dor que suportam, a luta que enfrentam, a coragem de que se imbuem os transgêneros em busca de sua verdadeira identidade. Eles merecem nosso respeito. No mínimo.

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1 COMENTÁRIOS

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  • Paulim
    11/03/2023
    Idiota