NOSSAS LETRAS

Vamos fazer um filme

Leia a crônica de Baltazar Gonçalves.

Por Baltazar Gonçalves | 25/02/2023 | Tempo de leitura: 4 min
Especial para o GCN

Take 3: Inspetor na Colonia Penal

Tínhamos feito um ensaio na presença do sensor parecerista inspetor, agora será pra valer: vamos fazer um filme. A promessa de gozo estremece a equipe no silêncio que antecede a execução. O inspetor entra em cena, ele também é peça na engenharia da máquina do Estado. Tudo bem se cada um tiver seu lugar no mundo, phod@ é sentir na pele projetos de extermínio e não poder desviar da bala, a ex. do ex-presidente que tomou vacina contra covid escondido e disse em público que a gripe assassina não mataria ninguém. A Lei Rouanet era um programa do governo federal que viabiliza a realização de eventos culturais com isenção fiscal no Imposto de Renda, era excludente e nós nunca faríamos esse filme se não fosse a democratização que a Lei Paulo Gustavo proporciona. Bora rodar esse filme custe o que custar.

[A base do roteiro] inspirado em Kafka, a narrativa é metáfora que nos remete à reflexão dos regimes ditatoriais, onde o poder não é distribuído na estrutura jurídica, mas concentrado em personalidades. A cena se passa no barracão da casa do Bill que emprestou a locação aos olhos de um visitante (o inspetor parecerista da Lei Paulo Gustavo) que veio acompanhar o processo de tortura e execução de uma jovem e demonstra claramente seu pendor pela tortura.

O inspetor não sabe nem imagina. Tensão redobrada. Ele aceita tomar o papel de Clara na maca da tortura, prometemos prazer: você vai sentir o que só ela sentiria. Ele se entrega na penumbra macia da sala quando deita sua gordura molhada na chapa de zinco. No zinkunú amarrado espera eletrificação dos sentidos. Como se vivo pela primeira vez na vida, o inspetor estremece na presença do Benfeitor que é um homem forte mascarado robusto sem gorduras além daquela que esfrega no corpo do supliciado. As mãos sôfregas amarradas, suor em bicas: Alguém liga os ventiladores, a máquina da lei é má.

Apesar do medo o inspetor se entrega, afinal isso é só um filme ainda pensa ele. Nas camadas da memória, formigas incansáveis surgem do pântano inconsciente pétalas de traumas carcomidos. O Benfeitor entra no enquadramento da segunda câmera, seus passos lascivos criam atmosfera cardíaca, sex appeal solar e alma deformada naquele tipo de pressão que confere aos grandes peixes aguda visão no lamaçal dos rios. Agora os grampos condutores zunem alta tensão fincados no corpo do Inspetor, no corpo gorduroso de banha e ódio e estrume porque ele caga de dor eletrificado de verdade. O ácido espargido queima lentamente sua pele e faz surgir o doce perfume de carne humana queimada. O corpo é a realidade sobre fios e cabos elétricos, máquina de produzir desejo e morte. Milhares de impulsos elétricos nos calcanhares, prendedores de agulhas finas, o bronze tine. O Inspetor suspira afogado na onda de horrores que aflora na sua mente, as mortes por covid e as mortes de antes, que não foram divulgadas, os corpos de francanos desaparecidos na ditadura, as leis dos promotores ambíguos lambedores das feridas e do pus daquele regime sangrento que foram os anos de chumbo.  Os gritos do inspetor. Ele torturou e mandou matar, os gritos dos que não escaparam da chacina a seu mando. Gemidos infernais. Essa câmera filme a boca torta dele, aquela se afasta para mostrar o quanto ele está sozinho agora. A mão que assinou o decreto matou milhares de fome, o Inspetor dilacerado sente a mão do inconsciente reprimido esmagando sua máscara de homem de bem. Talvez por ser a última esperança antes do fim, quando sente o toque das mãos quentes e firmes do Benfeitor ele diz: me beija. O ardor é extremo. Isso não é um filme. A dor é real, o corpo é a realidade. [dobrem a voltagem, feche o enquadramento] as micro rupturas nos lábios do inspetor sangram [mais voltagem] os olhos esbugalhados [mais, mais] tremor, palpitação, derrame. O inspetor convulsiona num misto incalculável de prazer e arrependimento para finalmente chegar ao êxtase [filma urina e fezes]. No último repuxo de boca torta, desejando esse beijo do Benfeitor que nunca virá, o inspetor suspira recebendo a morte por prêmio de suas faltas | corta | corta | corta | desliguem a máquina, temos um filme.

Créditos finais: Locação: Bill / Roteiro: Baltazar / Câmera e edição: Antônio B.

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