NOSSAS LETRAS

Vamos fazer um filme

Depois de uma semana, recebemos o relatório do inspector sobre o filme que pretendemos realizar com o financiamento da Lei Paulo Gustavo. Leia o artigo de Baltazar Gonçalves.

Por Baltazar Gonçalves | 18/02/2023 | Tempo de leitura: 3 min
Especial para o GCN

Take 2: O relatório do inspetor

Depois de uma semana, recebemos o relatório do inspector sobre o filme que pretendemos realizar com o financiamento da Lei Paulo Gustavo. Não é exagero dizer que esse parecerista fora delegado pela “Fundação Mais Esporte Que Arte e Cultura do Noroeste Paulista” com ordens de censurar nossa direção.

Em seu relatório ele advertia que “as sensações nas cenas depreciam os bons costumes, não patrocinamos linguagem obscena”. Três parágrafos adiante ele continuava em tom miliciano “nosso governo vende saúde e bem-estar, se eu fiquei incomodado em certos momentos da narrativa outros ficarão”.

Com orçamento em risco já pensávamos um plano B, o caminho mais curto para realizar a obra seria prometer cortes e mudanças no roteiro. Prometemos o que convinha e agendamos uma segunda visita do inspetor parecerista para assistir outro ensaio agora dentro do padrão. Cá entre nós, com essa gente não adianta argumentos nem ressentimento. Não adiantaria responder que o efeito esperado na história contada é justamente o incômodo e o desalojamento, queremos que o filme penetre na mente do espectador obstruído e produza antídoto para o afogamento na polarização em voga.

Não adiantava esbravejar. Na verdade, o inspetor é o Estado que representa e estão cagando e andando se nosso filme deflagre o sujeito coisificado, o massacre das subjetividades, o desalinho das consciências de classe em aparência de harmonia, todo o quadro clichê de sagrada família. A economia das culturas pulverizadas quer números nas planilhas dos lucros e, ao que parece, a morte romanceada de uma jovem numa cena de tortura sadomasoquista já está banalizada o suficiente.

Segundo o inspetor no malfadado relatório, “a personalidade ambígua do torturador oscila entre paternidade desejável e indecência reprimida”. Ora, se a representação dos desejos inconfessáveis foi percebida como conflitante isso dirá mais da percepção de quem assiste do que sobre os criadores. Ao que parece, a concordância no ato de entrega dos sujeitos submetidos gerou na fonte cínica do pensamento do Inspetor um incômodo libertário. Prestamos atenção nas reações dele quando disse “sério que termina assim?”. O Inspetor quer mais, bingo!

Talvez o inspetor parecerista tenha percebido a narrativa comportamentalista cuspindo indultos. Talvez que impelido a absorver ideias em fluxo tremeu desejando morte-vida e sentiu-se desconfortável em sua armadura fascista rígida. “A pornográfica engendrando ideologia gênero na obra é intolerável”, ia dizendo as palavras dele no texto. O Inspetor quer mais, notamos o prazer dele assistindo o ensaio. Sua sensibilidade entorpecida aflorando estampa de alegria deprimente. Ele esteve o tempo todo sintonizado com o vazio na morte sem sentido da personagem, ele queria matá-la ou morrer por ela?

No final do relatório, o martelo da censura: “o filme deve ser entretenimento, se não for saudável para distrair não terá financiamento”. Contra essa gente não adianta argumentar, tínhamos que reagir. Não estamos mais no jardim da infância, o tempo da inocência passou porque tende a ser assim, nos perguntávamos se o contrário de “saudável” seria “doente” e concluímos que corremos grande perigo adjetivar cultura em termos morais.

Precisávamos decidir, o apelo por unanimidade continua burrice. Se aos olhos da lei parecemos atrevidos, informamos nossa decisão de finalizar o filme, dessa vez preparamos a cena para receber o inspector parecerista como personagem e dar-lhe o que realmente queria.

Somos apenas operários nessa engenharia, peões no tabuleiro, não existe neutralidade política nem mesmo numa cena mórbida de tortura inspirada em x – a marca da morte, de Ti West com a deliciosa e prendada Mia Goth. Vamos fazer o filme, custe o que custar, a vaidade é mesmo o caroço da prepotência.

O inspetor ainda não sabe o que faremos com ele, nem imagina o que o espera. Por isso pedimos encarecidamente a quem lê que não espalhe nossa intenção, queremos que seja surpresa para parecer mais realista as emoções do desfecho.

A promessa de gozo já estremece nossa equipe mergulhada no silêncio que antecede toda execução.

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